Para quem não sabe muito sobre balé, a palavra 'bailarina' talvez instigue a imagem de alguém subindo na ponta dos pés, girando piruetas ou fazendo espacates no ar, mas para quem realmente aprecia a dança, não é só isso que compõe uma verdadeira bailarina. Há algo que inúmeras habilidades ou treinamento não podem dar, algo que não pode ser ensinado. Uma pequena luz que, quando desenvolvida, cresce além da explicação: a alma e a sensibilidade de um artista.
Durante toda a minha vida, admirei bailarinos que acreditava poderem me ensinar não apenas como fazer os passos, mas como SER uma bailarina. No início, observava como minha mãe (e professora) fazia um exercício, acompanhando as mãos com os olhos, e como sua expressão suavizava cada vez que ela demonstrava um adágio. Notava minha professora de flamenco se mover ao som do violão e como os acordes pareciam se infiltrar em todo o seu corpo, enchendo-a de energia e vibração. Eu não conseguia tirar meus olhos dela, mesmo quando se apresentando em um conjunto.
Minha professora de balé no Canadá costumava dizer que podemos aprender muito observando outros bailarinos. Não nos comparando a eles, mas admirando suas qualidades e escolhendo aquilo que desejamos um dia integrar em nossa própria dança. Sempre pude me identificar com bailarinos de baixa estatura como Alessandra Ferri, Baryshnikov, Gelsey Kirkland, Roberta Marquez e Alina Cojocaru, talvez porque fosse mais fácil me imaginar em sua pele. Todos eles tinham algo em comum que eu não conseguia identificar (além de serem baixinhas como eu), algo em sua qualidade de movimento, a maneira como se portavam, a intenção e a emoção que traziam para sua apresentação.
Ao me encontrar em um ambiente profissional, fiz questão de observar a todos atentamente e fiquei impressionada com a incrível facilidade e controle demonstrados por meus colegas, especialmente sua capacidade de representar um papel, por menor que seja, e roubar a cena. Eles pareciam estar bem mais a frente em termos de desenvolvimento artístico e amadurecimento, e eu ansiava por alcançá-los.
No Royal Ballet, há muitos jovens talentos que estão apenas começando suas carreiras, bem como aqueles que já construiram um legado e são notoriamente conhecidos na comunidade da dança (e além). Quando entrei na companhia, ficava deslumbrada por estar perto de todas essas estrelas. Passava por eles nos corredores e morria de vontade de pedir um autografo, tirar uma foto abraçadinha com eles. Sentia-me como rodeada de celebridades (o que eles verdadeiramente são no mundo do balé).
No meu primeiro ensaio geral, sentei-me num canto do estúdio De Valois e notei que a sala ficou em completo silêncio enquanto assistíamos, hipnotizados, ao pas de deux de Giselle com Carlos Acosta e Natalia Osipova, os olhares fixados no casal e em sua entrega. Parecia que eu testemunhava algo sobrenatural, um lendário bailarino cubano em parceria com uma bailarina russa recém-contratada que literalmente flutuava no ar. Sua arte, paixão e comprometimento eram simplesmente extraordinários. Eu nunca havia testemunhado nada igual, não tão de perto.
Nem em meus sonhos mais malucos poderia ter imaginado que um dia estaria trabalhando ao lado de Carlos e participando do processo criativo de seu balé Carmen, muito menos sendo treinada por Natasha (como ela gosta de ser chamada), Nela, Laura ou Sarah. Uma coisa é observar um bailarino e imaginar o que ele está pensando quando está se apresentando, outra bem diferente é receber seu feedback e ter uma janela aberta para um pequeno vislumbre de seu mundo.
Inicialmente, me conti em fazer as sessões de treinamento (coaching) opcionais que agora ocupavam nossa semana, pensando que talvez estivesse muito velha para me inscrever no meio de novos membros da companhia que haviam acabado de sair da escola, mas assim que entrei na sala com meu tutu nas mãos e novas sapatilhas de ponta, minhas dúvidas imediatamente se dissiparam. É claro que estaria pronta para aprender com os melhores! Era a oportunidade de uma vida e algo que relembraria com carinho para sempre.
Começamos com exercícios básicos de trabalho de pontas que depois se transformaram em pequenos trechos de solos e, eventualmente, aprendemos variações inteiras de Cinderela, A Bela Adormecida e Dom Quixote. Estávamos colocando nosso árduo trabalho de técnica em uso e desenvolvendo nosso potencial artístico, mas mais do que o prazer em poder trabalhar nos solos foi o feedback que recebemos desses artistas excepcionais, que generosamente compartilhavam seu amor e experiência conosco. Meus ouvidos estavam sintonizados e meu cérebro funcionava como uma esponja tentando absorver cada palavra.
Os passos intermediários
Depois de passar algum tempo no estúdio com elas, percebi que não estavam ali para nos ensinar como ser perfeitas; muito do que foi dito estava relacionado com o que podemos fazer quando as coisas não saem como planejamos, em como transformar uma falha em algo positivo e mascarar as imperfeições. Aprendemos que dançar é como um ato de malabarismo, trata-se de compensar aqui e ali e cuidar tanto dos passos intermediários quanto dos grandes.
'Trata-se de fazer pequenos ajustes e brincar com a musicalidade.'
A música
Há muito tempo suspeito que a música exerce grande força por trás do que fazemos, é como os bailarinos parecem esquecer os desafios técnicos (e a sensação de estarem expostos) e se entregam ao momento. Capturar os acentos da música, a velocidade e temperamento do que está sendo tocado e brincar com a dinâmica foi altamente enfatizado nessas sessões de coaching.
A coisa que mais admiro em Laura, além de sua bela qualidade, é sua musicalidade, e não me surpreendeu que ela tenha escolhido o solo de fada madrinha de Cinderela para nos ensinar. Todas as coreografias de Frederick Ashton são muito musicais, e se você não prestar atenção, fica para trás. Adorei cada segundo com ela e cada dica que nos deu.
A história
Ao demonstrar como fariam um determinado passo (e neste ponto, eu poderia ter sentado felizinha e assistido à performance delas), falavam sobre como o simples gesto de um braço significa algo e cada movimento conta uma história. Mesmo quando se preparam para o primeiro equilíbrio, já personificaram o personagem que estão retratando.
‘A simples qualidade de uma caminhada pode dizer muito.’
Isso é algo que também ouvi quando estudante, nas aulas de Drama e Expressão com Sorella Englund. Nossa caminhada pode demonstrar força ou vulnerabilidade, malícia ou inocência. Com o propósito e a intenção corretos, você pode revelar a personalidade de seu personagem antes sequer de executar um passo. É em nossas expressões faciais, mas também na qualidade dos movimentos, que a história é revelada. Com o uso da imaginação, mantemos um diálogo constante em nossas mentes, bem como uma conversa interna motivacional e instrutiva.
O brilho
Minha mãe sempre me disse para imaginar um pequeno raio de luz vindo do céu e encontrando com meu próprio raiozinho. Parece tão cafona quando dito em voz alta, mas ainda penso nisso antes de subir ao palco, e ela estava certa (entre muitas outras coisas). Marianela falou em emanar uma luz do peito para o auditório, Laura mencionou estar espalhando uma sensação calorosa, Osipova falou em encher o palco com sua presença ... todas tinham uma forma distinta de dizer a mesma coisa, que estamos a partilhar algo com o público e a projetar aquilo que vem de dentro. Sinto que posso ressoar muito com isso.
Há tanto para se lembrar e assimilar no balé que acho que todos nós encontramos nosso foco pendendo para os aspectos técnicos da dança, mas no fim, o que realmente queremos é ser capazes de nos expressar, nos comunicar com o público numa linguagem que seja só nossa. Acredito que seja preciso muita confiança em nossas habilidades, mas quando conseguimos nos livrar de todo o medo e sermos autênticos, podemos alcançar nosso maior potencial.
Embora esses bailarinos lendários tenham se tornado meus colegas de trabalho e eu os veja ao redor da Royal Opera House o tempo todo, ainda me sinto muito humilde em sua presença. Quando terminamos nosso último coaching da semana com Osipova, percebi que nem em um milhão de anos imaginei que um dia isso aconteceria. Ela havia trabalhado comigo e uma amiga por uma hora em cada pequena sessão da variação de Dulcinéia (Don Quixote, Ato II), com sugestões do que cada uma poderia fazer melhor e qual versão seria mais adequada. Ela nos instruía a dizermos a nós mesmos 'Não estou cansada. Eu não estou cansada!' o que achei muito engraçado! Talvez seja esse o segredo de sua energia implacável.
Eu me senti a bailarina mais sortuda do planeta por ter tido um momento íntimo no estúdio com essas personalidades cujos trabalhos venho a admirar por tantos anos. Honestamente, um dos destaques dos meus dias aqui no Royal Ballet. Percebi que talvez não devesse ter tanto medo de pedir conselhos quando parecem tão felizes e abertas a compartilhar seus conhecimentos. Sua dedicação e generosidade foram verdadeiramente inspiradoras, e elas devem ter muito mais a transmitir às gerações futuras, me lembraram de tudo que eu já valorizava na dança e de tudo que aprecio quando as vejo dançar. Encheram meu coração de luz e felicidade, e continuarei aprendendo ao observá-las com admiração e respeito sempre crescentes.
'Para mim, o corpo diz o que as palavras não podem. Acredito que a dança foi a primeira arte. Um filósofo disse que a dança e a arquitetura foram as duas primeiras artes. Eu acredito que a dança veio primeiro porque é gesto, é comunicação. Isso não significa que ela está contando uma história, mas significa que está comunicando um sentimento, uma sensação para as pessoas. A dança é a linguagem oculta da alma, do corpo. ' - Martha Graham
Natalia Osipova e Carlos Acosta dançando Giselle Ato II.
Marianela Nunez e Vadim Muntagirov em Don Quixote Ato III.
Que texto inspirador!! Amo a riqueza dos detalhes de seus posts, chego a ficar emocionada! Espero um dia assisti-la no palco e ver seu brilho de perto!❤️