'Durante o longo dia de 24 de dezembro, os filhos do Doutor Stahlbaum estavam proibidos de entrar na sala. Fritz e Marie aninharam-se no quarto dos fundos enquanto anoitecia. Em voz baixa, Fritz dizia à irmã mais nova que, não havia muito, vira a sombra de um homenzinho deslizar pelo corredor com uma grande caixa debaixo do braço, mas sabia muito bem que era apenas o padrinho Drosselmeier. Com isso, Marie bateu palmas de alegria e exclamou: 'Oh, o que você acha que o padrinho Drosselmeier nos trouxe desta vez?'
Assim começa a história de O Quebra-Nozes e o Rei Rato, escrita por E.T.A. Hoffmann em 1816, que inspiraria um dos mais queridos balés de repertorio. A cada temporada de inverno, companhias do mundo todo apresentam O Quebra Nozes, pois ele captura o espírito do Natal melhor do que qualquer outro. Acompanhamos a história de Clara (às vezes chamada Marie) e sua amizade com um boneco quebra-nozes que ganha vida na véspera de Natal. Juntos, eles lutam contra o Rei Rato, viajam por terras de neve até o Reino dos Doces, onde conhecem a Fada Açucarada e seu principe.

Na produção de Sir Peter Wright, apresentada pelo Royal Ballet há mais de trinta e cinco anos, Clara e seu irmão se encontram no meio de uma grande festa de Natal, maravilhados com a decoração, os convidados, presentes, muita dança e, é claro, a presença de Drosselmeier. Embora seja um ato festivo e alegre, há momentos que me dão um certo arrepio. A música de Tchaikovsky enche a cena de suspense. Que mistério acerca esse padrinho e seus truques mágicos?

Quando o relógio bate meia-noite e Clara se encontra sozinha, estranhas figuras aparecem para assombrá-la. A casa é transformada no palco de uma batalha feroz entre soldados e ratos. Tudo é muito assustador para a jovenzinha, mas isso não é nem metade da história. No conto de fadas, o pobre Quebra-Nozes tem que derrotar um Rei Rato de sete cabeças!
Depois de finalmente ter lido o texto de Hoffmann, entendi porque existe esse lado sinistro do balé pois é baseado em uma história bastante assombrosa (desde que estudo literatura, descobri que a maioria dos contos originais são meio pesados). Para a alegria do público e principalmente das crianças, o segundo ato é repleto de encantamento e diversão, com números de dança incríveis e um belíssimo pas de deux. Tudo acaba bem! Foi apenas sonho?! Até Hoffmann nos deixa com essa dúvida...
O Quebra Nozes tem um lugar especial no coração dos fãs da dança, assim como no meu. Todo mês de dezembro, minha mãe costumava nos levar, eu e meu irmão, para assistir O Quebra Nozes no Teatro Sergio Cardoso, apresentado pela Cisne Negro Cia de Dança. Todo ano, eu esperava ansiosamente por esse dia. Dirigida por Hulda Bittencourt, a companhia mantém essa tradição há mais de quarenta anos. Durante minhas férias em São Paulo há alguns anos atrás, tive a sorte de poder fazer aula com eles e assistir a um ensaio, testemunhando de perto seu amor e compromisso com a arte.
Além de me encantar com o balé e com a música, parte do que me hipnotizava nas produções de O Quebra-Nozes eram os longos vestidos e casacos de inverno dos adultos em festa, os vestidos rendados e jaquetas de veludo das crianças, a lareira sempre acesa e a neve caindo lá fora! O único Natal que conhecia era uma noite quente e abafada de verão, onde crianças vestem suas roupas mais leves e no dia seguinte brincam na piscina, com direito a um grande churrasco ao ar livre!
Acredito que haja algo mágico em celebrar o Natal no inverno, em beber chocolate quente perto de uma lareira acesa e passar uma tarde aconchegante com a família, acolhidos dentro de casa. Pois é assim que me acostumei aqui na Inglaterra. Adoro passear pelos mercados de Natal, ver as árvores e prédios iluminarem-se pela cidade ... isso faz com que os dias frios e as tardes escuras sejam um pouco mais agradáveis (aqui o sol se põe as 15h no inverno). Todos esperam por um ‘white Christmas’, um Natal nevado. Faz total sentido que a festa de Clara parecesse de outro mundo para mim, e que ela viajasse por uma terra distante onde flocos de neve dançassem.

Quando pequena, assisti inúmeras vezes a uma fita de vídeo do Quebra Nozes com o The New York City Ballet de 1993, estrelado por Macaulay Culkin como o Quebra-nozes e Jessica Lynn como a doce Marie. Talvez essa seja a origem de meus mais profundos desejos de dançar a Clara, mas antes de ter essa chance, em minha primeira participação nesse balé (versão adaptada), eu seria um presentinho que sapateava e um marzipan. O espetáculo de minha mãe se chamava Um Sonho de Natal.
Aos treze anos, no retorno do espetáculo Um Sonho de Natal com o Ballet Marcia Lago, pude ser a Clara. Esse ano de 2001 foi marcado por grandes conquistas, quando comecei a dar sinais de um futuro promissor como bailarina. Essa seria a única vez em que eu dançaria o papel principal como aluna de minha mãe, pois mal sabíamos que eu logo partiria para o Canadá para aprimorar ainda mais meu treinamento de balé.
Ao longo de minha carreira profissional, Clara continuaria me enchendo de felicidade e marcando grandes realizações. Foi o primeiro papel principal que dancei no Northern Ballet e, alguns anos depois, no Royal Ballet. Em Leeds, a temporada de inverno geralmente começava no Grand Theatre, e depois fazíamos uma turnê por muitos lugares do Reino Unido. Com o Northern Ballet, também fiz o papel de Louise (que se torna a Fada Açucarada no segundo ato). Foi uma fase de muito aprendizado e crescimento que guardarei para sempre em meu coração. Meu partner era Hiro Takahashi, um bailarino experiente que me ensinou muitas coisas, entre elas que eu o deixasse fazer seu papel como partner.

Quando inexperientes, nós bailarinas fazemos o dobro do esforço necessário, ficamos tensas e rígidas para “ajudar” os bailarinos, quando na verdade isso apenas torna as coisas mais difíceis para eles. Podemos estar antecipando demais os movimentos, sendo impossível que descubram onde está o nosso eixo. Se você tentar saltar em preparação a uma levantada e não estiver coordenada com seu partner, vai parecer que pesa uma tonelada. Cada levantada exige extrema coordenação e sincronia.
Os bailarinos têm um trabalho muito difícil. Eles nos dão suporte, fazem com que nos sintamos confortáveis para executar os movimentos livremente, nos levantam com a maior graciosidade, fazendo parecer que não há esforço algum. Mas para melhor desempenho, o trabalho há de ser consciente e na medida certa.
Cada bailarino ou bailarina tem o seu próprio estilo e suas preferencias, e quanto mais você trabalha com alguém, mais você os conhece e antecipa esses ajustes, encontrando maneiras de se comunicar por meio dos movimentos e se acostumando a uma certa técnica, uma pegada diferente. Diz-se que quando uma bailarina fica bonita e confortável no palco, significa que seu partner é excelente!

A parceria de bailarinos não constitui somente em executar os movimentos com perfeição, adquirindo força e coordenação. Tem que haver um vínculo entre os dois, algo que transmita confiança e tranquilidade para quem está assistindo. Isso geralmente acontece quando o casal tem uma certa 'química' no palco, como nos relacionamentos românticos. Podem se comunicar por um simples olhar, falam a mesma língua quando dançam, e parecem se alimentar dessa troca de energia. Bons parceiros revelam o que há de melhor um no outro.
Eu e o bailarino australiano Benjamin Ella fomos parceiros no Quebra-nozes desde minha estreia como Clara no Royal em 2017. Também dançamos juntos em outros balés, como em Flight Pattern de Crystal Pite, e sempre sinto uma conexão especial com ele. Além de ser um bailarino extraordinário, também é atencioso e solidário. Para minha surpresa, este ano ele não seria meu partner. Confesso ter ficado um pouco ansiosa por descobrir quem seria esse novo príncipe ... teria um papel difícil a desempenhar.
Felizmente, dançar com o Luca também tem sido um verdadeiro prazer! Sempre me perguntei por que nós nunca havíamos dançado juntos antes, já que as parcerias também têm muito a ver com altura. As coisas correram muito bem desde o nosso primeiro ensaio e logo ganhamos total confiança um no outro. Tenho muita sorte de ter parceiros tão adoráveis, que estão dispostos a atingir o melhor possível, e que são artistas inspiradores. O processo é sempre uma jornada, uma experiência de aprendizagem. No fim, compartilhamos um momento indescritível no palco que fica para sempre em nossas memórias.

Além da minha nova (e, espero, contínua) parceria com Luca, há muitas coisas que fazem com que O Quebra-nozes deste ano pareça diferente e ainda mais especial do que nunca. Devido à pandemia, tivemos que superar muitos obstáculos para dar vida a essa produção, partindo do princípio básico de não podermos reunir todos os bailarinos em um só estúdio (portanto, não poder correr o balé como de costume), não termos nosso ensaiador Chris Karr, e recoreografarmos cenas para mantê-las socialmente distantes.
Criamos uma adaptação "covid -safe ", um quebra-nozes reformulado. Há menos pessoas envolvidas no balé, uma cena da batalha sem crianças (geralmente elas são soldadinhos ou ratos), menos números no segundo ato mas muita energia e valorização. Tudo pode mudar de um dia para o outro, mas por enquanto, somos gratos por poder trabalhar e manter essa tradição natalina incrível. Podemos não ter a mesma recepção de um teatro lotado, mas sabemos o quanto nossas performances significam para aqueles que estão presentes, e também para aqueles que assistem à magia em suas telas de televisão ou laptops.

Cada vez que desempenho o papel de Clara, ele me parece um pouco diferente. Lembro-me de como foi incrível dançá-lo com o Northern Ballet, e a emoção indescritível que senti ao fazê-lo no palco da Royal Opera House. Meu coração está cheio de doces lembranças dela, mas olhando as fotos de quando eu era apenas uma menina, dançando na escola da minha mãe, meu coração se enche de uma nostalgia que não consigo explicar. A emoção era surreal. Não me cabia de felicidade no palco, parecia que nada poderia dar errado. Eu simplesmente fazia parte da magia.
Para mim, dançar sempre foi uma relação de amor, de não deixar que as coisas atrapalhem o quão bem você se sente e a felicidade que a dança traz aos outros. Percebi que ainda me apego à emoção de experimentar as coisas pela primeira vez e procuro esse sentimento genuíno de felicidade quando danço. Sempre me preocupo em querer fazer o meu melhor, em estudar cada papel e aprimorar cada detalhe, mas ao invés de tentar ser ou agir como meus ídolos, a inspiração que tanto procurei para desempenhar o papel esse ano esteve comigo o tempo todo. É a minha essência, a criança dentro de mim.

Este ano, poderei compartilhar minha performance como Clara com um público ainda maior, pessoas de todo o mundo que irão assistir O Quebra-Nozes Reworked sendo transmitido ao vivo no dia 22 de dezembro. Isso significa que meus pais, parentes e amigos, também poderão assistir do Brasil, e isto me deixa extremamente feliz, honrada e grata por esta oportunidade. Espero que ela traga magia e alegria para muitos lares neste Natal.
Para reservar ingressos, acesse https://stream.roh.org.uk/packages/the-nutcracker-4/videos/the-nutcracker?_ga=2.115450054.1965730989.1607851202-1350013260.1606768952
'Preparando para um papel' é um post que escrevi em agosto sobre cada etapa da jornada de um bailarino até este se apresentar, inclusive um pouco mais sobre como me preparo para ser a Clara. Click here.
The Nutcracker (1993), NYC Ballet. The entire film can be found on YouTube.
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