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A pequena bailarina

Em julho passado, ao sentar-me no portão de embarque em Guarulhos esperando o voo que me levaria a Londres, pensava comigo mesma…dessa vez consegui dizer adeus e não derramar uma lágrima! Despedir-me de meus pais nunca foi fácil, embora façamos isso por quase vinte anos. Toda vez que os abraço e os vejo sumindo detrás dos portões, as lagrimas parecem se libertar, e num último instante, escorrem sem parar.


Talvez pude conte-las por ter me apegado ao fato de que voltaria ao Brasil muito em breve. Setembro não estava longe e logo estaria dançando Dom Quixote em Porto Alegre como convidada especial! Dançar em meu país natal era um sonho que se tornaria realidade, além de poder rever meus amigos e familiares.


Photo: Arthur Giglioli

Foi nesse clima de alívio e esperança que recebi uma mensagem da Paty, minha melhor amiga de infância. Começamos o balé juntas, desde pequenas éramos ‘parzinhos’ em todas as coreografias por sermos as menores da turma. Frequentavamos o mesmo colégio em São Paulo, o Imperatriz Leopoldina. Ia almoçar quase todos os dias em sua casa, para depois irmos juntas ao balé, ligadas ao som de Chiquititas e Sandy & Junior. Até aulas particulares de inglês fizemos juntas, o que odiava na época, pois nunca achei que fosse dominar a lingua tao bem quanto ela, que lembrava todas as palavras.


Paty sempre foi maravilhosa em tudo. Excelente em matemática, linda desenhista, e igualmente incrível no balé. Sempre me inspirou a me esforçar muito. Descendente de japoneses, acredito que tenha me introduzido à disciplina e seriedade que tanto admiro em sua cultura, e me encorajado a ser um pouco do seu jeito.



Dançamos juntas por muitos anos até que uma lesão a fez parar repentinamente, mas algo bom sempre surge quando menos esperamos. Paty acabou se interessando por medicina e se especializou em reabilitação. Tornou-se uma fisiatra incrível, ajudando-me em várias situações de desconforto e lesões.


Ao longo dos anos, eu e Paty inevitavelmente nos distanciamos, mas sem que perdêssemos nosso vínculo e amizade. Abri suas mensagens com certa curiosidade e vi que havia me enviado videos de quando era pequena, dançando Clara no espetáculo ‘Um Conto de Natal’ (nossa versão de O Quebra-Nozes). Havia também um filminho ainda mais antigo meu dançando no programa Pequenos Brilhantes do SBT.


Lá estou eu de tutu branco, coque alto e um adereço de flores, superelegante, uma mini bailarina de verdade. Devia ter uns dez anos. A imagem não me era tão nítida, havia sido regravada de uma fita VHS antiga, mas impossível não distinguir as pernas compridas e o sorriso radiante daquela pequena bailarina.


Um flashback dos velhos tempos de gravação me vieram a mente. Improvisávamos os passos pois sempre nos chamavam no último instante para essas aparições. Lembro-me claramente de naquele dia ter sido instruída a 'usar o espaço'. Não era um palco de verdade, e sim um set de filmagens com três plataformas irregulares, pequeninos degraus fáceis de tropeçar, um piso cinza escorregadio, luzes muito fortes, cameras por todo o lado. Só de pensar me faz arrepiar! Mas apesar de tudo, aquela garotinha parece completamente à vontade. Como podia estar tão feliz e confiante??!


Aos dez anos, dançando o solo de Kitri.

Ano após ano, penso em como minha vida teria sido diferente se não tivesse escolhido o balé, se fosse fazer outra coisa, ser outra coisa. Muitas vezes ao longo de minha carreira, especialmente em momentos de despedida, perguntei-me se essa era minha verdadeira vocação ou se a buscava por pura determinação. Mas ver essa pequena bailarina naquela telinha foi a resposta que precisava. Finalmente, as lágrimas me escorriam. Não eram de tristeza ou arrependimento, mas sim lágrimas de amor e alegria, pois havia sido lembrada daquilo que sempre fui, da luz que carrego em mim.


Photo: Arthur Giglioli

As pessoas me perguntam o tempo todo “Quando você decidiu que queria ser bailarina??” Tento me lembrar do momento exato em que me apaixonei pelo balé, digo que minha mãe foi bailarina e que era natural eu querer seguir seus passos. Mas foi total influência dela? Por muitos anos, tentei me convencer de que sim. Poderia eu ter escolhido essa vida sacrificante para mim? Assistindo a pequena Isabella dançar, a verdade é que me perguntava.. como poderia ter sido diferente??


Não é sua agilidade que me chamou a atenção. Crianças de hoje em dia fazem muito mais e são muito mais fortes tecnicamente. O que me impressionou é a emoção que ela transpassa. Ela é tudo o que eu busco em outras bailarinas, uma artista! Está no jeito de olhar, em como levanta seu queixinho e abre aquele sorriso carismático e genuino, em como sente a música . Faz tudo da melhor maneira que pode e parece não se importar com o que os outros pensam. Ela tem aquele brilho nos olhos, uma presença especial e confiança que me inspira todos os dias desde então.


Em minhas apresentações recentes em Porto Alegre, dançando o papel de Kitri, senti uma energia semelhante, alguns chamam de inspiração, vendo bailarinos jovens e talentosos mergulharem sem medo em seus papéis. Através deles, consegui encontrar essa mesma coragem dentro de mim e ser lembrada da magia que acontece no palco quando você simplesmente se deixa levar e segue seu instinto, deixando de lado qualquer crítica. Você sente que tudo é possível, e é a experiência mais leve e gratificante.


Kitri e Basilio (Paulo Rodrigues) © Martins

Paty e sua familia também estavam em Porto Alegre, torcendo por mim, testemunhando a bailarina adulta que me tornei. Mais um reencontro inesquecível. Agradeço a Paty por tantos momentos iluminados, por dar-me motivo a acreditar que escolhi o caminho certo, não havia como não ser, e ter me fortalecido com um sentimento de amor e fé. Acredito que os maiores tesouros encontraremos dentro de nós mesmos.


Ao lado de Paty e minha mãe, sua irmã Paula e mãe Helena.

O video da pequena bailarina.

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