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As sapatilhas

Tenho uma vaga lembrança de, quando bem pequenina, vestir as enormes sapatilhas de minha mãe e tentar subir na ponta dos pés. Não contando esses meus prematuros experimentos em casa, fui introduzida às pontas quando tinha oito anos de idade, junto com ansiosas amigas da faixa vermelha. Sabíamos que aquele seria o ano em que descobriríamos os segredos e maravilhas das incríveis sapatilhas de ponta, e mal podíamos nos conter de alegria.


Lembro-me de esperar a chegada do meu primeiro par de sapatilhas de ponta; minha mãe teve que encomendá-las porque não existiam no meu tamanho (sempre tive pés pequenos). Logo que abri a caixa, percorri meus dedos pelo seu cetim, me perguntando do que elas eram feitas. Algo resistente, pensei. Como madeira, ou metal?? Guardei aquele primeiro par em meu armário por muitos anos, como um souvenier, junto com o certificado de congratulação do Ballet Marcia Lago por minha iniciação no trabalho de pontas.


Minha primeira aula de pontas.

Meninas de oito anos como nós ficam perplexas ao ver como as bailarinas conseguem se equilibrar e girar na ponta dos pés. Mal podíamos esperar para experimentar! Nossa empolgação provavelmente durou as três primeiras aulas antes de percebermos como era doloroso dançar nas pontas. Parecia que tinha dois pequenos tijolos presos aos meus pés, mas eu sonhava em ser uma bailarina de verdade e suportaria o que fosse necessário. Assim que superei o choque inicial de bolhas e dor nos dedos dos pés, recusei-me a tirá-las.Logo senti que ficar fazendo pas de bourréesinhos para lá e para cá não era mais o suficiente. Queria algo desafiador, estava mesmo muito ansiosa para me apresentar nas pontas pela primeira vez em nosso espetáculo de fim de ano da Cinderella.


Primiero espectáculo nas pontas - 1996

Não há regras quanto à idade em que se deve introduzir o trabalho de pontas; o momento é individual a cada uma e deve ser levado a sério. Não se trata apenas da força dos pés (quanto mais flexíveis forem, mais bonitos serão para o balé, mas exigem mais controle). Força e estabilidade do joelho, quadril e coluna, e coordenação geral, são pré-requisitos. Deve-se haver um controle adequado de en dehors no quadril e compreensão de alinhamento do corpo, o que nos permite subir nas pontas e não afundar em nossas sapatilhas ou nos machucar.


Por muitos anos, pensou-se que doze era a idade em que uma criança deveria começar o trabalho de ponta.No entanto,generalizar assim não é levar em consideração o tipo físico, o estágio de desenvolvimento físico e técnico e a intensidade do treinamento.-Howse& McCormack emAnatomia, Técnica de Dança e Prevenção de Lesões

Após dois anos de aulas semanais de ponta, o que na minha cabeça parecia uma eternidade, finalmente consegui um pequeno destaque em nosso espetáculo de A Pequena Sereia. Meu solo de Linguado começava com saltinhos, pequenos galopes, na ponta. Foi bem mais desafiador do que eu esperava, mas a emoção de estar ali demonstrando minhas habilidades era grande. Minha professora (e mãe) Marcia Lago sempre me encorajando a ir além da minha zona de conforto. Logo percebi que levaria muitos, mas muitos anos para desenvolver a força e controle necessários para se ter um bonito trabalho de pontas, e é algo que tento aprimorar continuamente ao longo de minha carreira.


Linguado em A Pequena Sereia - 1997.

Aos onze anos, minha mãe me levou a uma loja bem atípica em São Paulo para comprarmos meu primeiro par de sapatilhas importadas.Dentro daquela loja, quase tudo era roxo; desde decorações de vitrines até pequenos detalhes nas prateleiras e peças de balé em exibição.Fiquei hipnotizada e queria comprar tudo (embora preferisse rosa), mas logo fui despertada do meu devaneio e encaminhada à extensa prova de sapatilhas.


Lembro-me de uma senhora desenhar meus pés em um pedaço de papel branco, obtendo as medidas exatas e o comprimento e largura apropriados, para que fossem combinados com os inúmeros pares de marcas francesa, inglesa e japonesa. Levei horas para decidir, avaliando-as com muito cuidado, e tomaria conta delas com muito carinho. Naquela época, era muito difícil de se conseguir sapatilhas importadas; eram muito caras e por isso somente as usaria para ensaios e apresentações importantes.


Aos 11 anos vestindo minhas Chacotts.

Ao longo de minha vida estudantil e profissional, troquei de marcas muitas vezes, finalmente me encontrando com a Bloch, mas nunca me sentindo completamente satisfeita. Estava feliz usando Gaynor Mindens por três anos, até que me mudei para o Canadá e a escola me pediu para experimentar outras marcas que acreditavam ser mais apropriadas para a minha idade. Acho que este foi o início da minha relação de amor / aversão com minhas sapatilhas de ponta.


Depois da minha formatura, voltei a usar Gaynors, apenas para ouvir depois de algumas semanas em meu novo emprego que não poderia usá-las. No início, havia um preconceito de que Gaynor Mindens faziam com que as bailarinas tivessem 'pés fracos ' por causa de sua elasticidade e da forma como são feitas. A verdade é que nunca encontrei outra marca que fosse tão confortável e confiável, mas ao experimentá-las agora, me parecem muito diferentes e não consigo me adaptar as suas peculiaridades.


Vestindo as duradouras Gaynors.
Na NBS com Freeds.

Quando Marie Taglioni surgiu na ponta em 1832, suas sapatilhas nada mais eram do que sapatilhas de cetim, cerzidas nas laterais e dedos para manterem seu formato. Felizmente, as coisas evoluíram desde então. No geral, hoje as sapatilhas de ponta são feitas de camadas de papel (não madeira) colados e moldados em uma 'caixa' de frente plana. Às vezes são feitas de plástico, como as Gaynors. A sola consiste em uma peça de couro (ou plástico) com resistência variável. As sapatilhas de ponta geralmente têm um ciclo de vida curto, durando cerca de uma semana ou mesmo dias. Por serem feitas à mão, elas nunca são iguais. Algumas levas podem vir mais resistentes e durar mais, outras mais macias.


Anatomia de uma ponta.

As bailarinas profissionais levam suas sapatilhas de ponta muito a sério, experimentando diferentes marcas ao longo de suas carreiras e personalizando-as de acordo com suas necessidades. Podemos gostar de seu formato e conforto, mas pedir uma gáspea mais alta ou uma haste mais macia, tirar alguns centímetros do tecido lateral ou inserir material no calcanhar ... há infinitas maneiras de personalizá-las, mas cada ajuste pode fazer uma grande diferença em como sentimos as sapatilhas nos pés. Escolher o par errado pode interferir em nossa dança tanto quanto um machucado faria.



Durante uma de nossas últimas apresentações deO Quebra-Nozes aqui no Royal Opera House,onde dançava a Boneca Columbine no primeiro ato, achei que tinha feito um trabalho medíocre e, é claro, saí do palco culpando minhas sapatilhas.Estavam moles demais!Assim que chegasse no vestiário, iria jogá-las no lixo.Mas antes que eu pudesse fazer meu arremesse, nossa professora de balé entrou no camarim e disse:


‘Que sapatilhas você estava usando esta noite, Isabella? Estavam lindas! Deveria guardá-las para suas apresentações de Clara.’

Comecei a rir e tive que explicar que estava prestes a me livrar delas, achando que não prestavam. Eu tentei usá-las no dia seguinte, desta vez me apresentando como Marzipan, só para me certificar de que não tinha sido apenas má sorte ou um dia ruim, mas no fundo eu já sabia que elas não prestavam porque não me davam suporte. Às vezes, o que nos parece bonito não é necessariamente a opção mais segura e confortável.


Preparando sapatilhas para Clara.

Além de uma pesada rotina de costura de fitas, elásticos e cerzidos, as bailarinas gostam de preparar suas pontas de acordo com cada papel. Podemos passar horas na frente do espelho, testando uma pilha delas, e fazendo o mesmo a cada noite. Gosto das minhas bem macias e silenciosas, o que significa que tenho que batê-las contra uma superfície dura (geralmente um pedaço de granito no camarim feminino), pelo menos 20 vezes de cada lado. Algumas bailarinas gostam de martelá-las, provavelmente uma ideia mais inteligente.


Raspo suas costas com um estilete e faço um cerzido leve ao redor da ponta; depois de usadas, eu as penduro para secar no final do dia e ajudá-las a durar mais. Sou muito supersticiosa com minhas pontas e quando encontro um par de que gosto, guardo-o para os ensaios principais ou para o palco, tirando toda a vida deles até que fiquem irreversivelmente quebradas.


No Royal Ballet, recebemos quantos pares de sapatilhas de ponta forem necessários para passar a temporada. Fazemos viagens ao shoe room (quartinho das sapatilhas) cada semana para obter novos pares e costurá-los. Encontramos nossos cubículos recarregados de novas encomendas. As senhoras do departamento de calçados garantem que sejam adaptadas às nossas necessidades e perseguem qualquer atraso na chegada, verificando que nosso estoque não se acabe. Pode-se encontrar até 150 pares de sapatilhas de ponta naquele espaço ao mesmo tempo.


As bailarinas constroem um relacionamento íntimo com suas pontas, e sua escolha é algo extremamente pessoal. Preparar sapatilhas é um processo demorado e muito cuidadoso que, por fim, tem como principal intuito nos ajudar a dançar com conforto e segurança. Cada uma de nós assume a responsabilidade de encontrar aquelas que nos vestem melhor, o que varia para cada ocasião, seja uma sapatilha mais mole para variações de muito salto ou um par mais duro que suportem equilíbrios, promenades, piruetas e bourées.

Nossos pés estão acostumados a ficar nas pontas a maior parte do dia, mas isso não significa que não tenhamos bolhas, calos ou unhas machucadas; são ossos do ofício. Posso ter estragado a magia, mas a incrível resiliência e força dos pés de uma bailarina é algo que nunca deixei de admirar. São as sapatilhas de ponta que nos permitem alcançar essa ilusão de um ser leve e etéreo; corpos que desafiam a gravidade.


Bailarinas do Royal Ballet em O Lago dos Cisnes.

Como as bailarinas da companhia prepararam suas sapatilhas de ponta.


Um video sobre 'os pés' feito pelo Australian Ballet.

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