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Construa seu caminho

Há um tempo atrás, me deparei com uma obscura livraria escondida entre pequenas lojas de arte e literatura em Covent Garden. Enquanto procurava um livro inspirador que me desse confiança e aliviasse a ansiedade sobre meu futuro, algo mais chamou minha atenção. Em um cantinho da livraria, um homem de cabelos escuros e olhos profundos oferecia um tipo diferente de leitura.


Sentado em uma pequena mesa com vista para a rua, o homem se apresentou como especialista em astrologia preditiva e tarô. Meio desconfiada, me ofereci para falar com ele, apenas para tentar obter algumas respostas. Ficaria na Inglaterra ou minha vida estava prestes a dar uma reviravolta? O homem disse coisas verdadeiras sobre meu passado e da maneira como andava confusa, tentando fugir de minha situação atual. Mencionou algo relacionado a 'água' e 'cisnes', o que achei uma bizarra coincidência já que na época estava dançando O Lago dos Cisnes com o English National Ballet. Mas algo que disse ficou comigo até hoje:


"Você precisa abandonar o que a impede de conseguir o que quer, precisa desbloquear sua energia. Por que não tenta meditaçāo?"


O Lago dos Cisnes no Royal Ballet

Segui seu conselho e comecei a praticar mindfullness, atenção plena ao momento presente, deixando de me preocupar tanto com o futuro. Adquiri o hábito de caminhar no parque quando estressada, sentar em silêncio por alguns minutos pela manhã e escrever no meu diário antes de dormir. Li O Poder do Agora de Eckhart Tolle, tentei apagar quaisquer pensamentos negativos e me conectar com minha verdadeira essência, e alguns meses depois recebi o inacreditável convite para dançar no Royal Ballet. E o que começou como um contrato temporário de três meses se prolonga até hoje!


Desde aquele momento, sempre que me senti perdida ou inquieta, soube que deveria confiar na minha intuição. Comecei a acreditar ainda mais no momento certo das coisas acontecerem, na energia que criamos e no que ela atrai para nossas vidas, na importância em se ter integridade. Aprendi a confiar no Universo, pois às vezes nosso próprio desejo nos impede de conseguir o que queremos. Acabamos criando obstáculos quando às vezes tudo o que precisamos é desencanar, o que parece impossível, a menos que encontremos uma nova perspectiva.


Clara © Asya Verzhbinsky

Sempre tive "sorte" quanto aos papéis que interpretei. Digo que minha carreira foi feita de circunstâncias incríveis e inesperadas, como o que ocorreu em março passado, quando entrei em cena no ultimo minuto para dançar o papel principal em Danses Concertantes de MacMillan quando duas bailarinas principais se machucaram. Achei as apresentações extremamente divertidas, apesar de ter aprendido a coreografia tão rápido, e adorei a música e o estilo. Oportunidades como essa não acontecem com muita frequência no mundo da dança, mas eu sempre me certifiquei de estar pronta para agarra-las com entusiasmo.


São momentos pelos quais sou muito grata. É uma honra e um privilégio ser confiada a algo tão grande e poder fazer trabalhos incríveis como esse. Mas depois de tantos anos surfando essa onda, peguei-me imaginando se esse não seria o ano em que finalmente poderia ganhar meus próprios papéis. Criei grandes expectativas para a nova temporada, por coisas que poderiam ser dadas não por acaso ou mera sorte, mas por mérito próprio.


"Uma zona de conforto é um lugar lindo, mas nada cresce lá."


Danses Concertantes © Andrej Uspenski

Acreditei por tanto tempo que ao subir a montanha, encontraria um grande pote de ouro! Que a vida seria mais fácil, e que isso levaria todos os meus sonhos a se tornarem realidade, mas isso foi um pouco precipitado da minha parte. A nova temporada começou silenciosa para mim e de repente me vi lutando para encontrar meu lugar, até questionei o propósito de estar aqui, não podendo dançar o que esperava receber e nem tanto quanto gostaria.


Este é apenas meu segundo ano como Primeira Solista e já me sinto tão limitada? Até mesmo os papéis em que me vejo adequada estão me escapando. É minha culpa? Sera que sou boa o suficiente? Como cheguei até aqui?!!


Muitas vezes na carreira de uma bailarina, especialmente em grandes companhias, nos sentimos fora de controle do proprio destino e à mercê de escolhas artísticas e outros fatores em jogo. Não escolhemos o que dançar, podemos sugerir sutilmente e esperar que uma pequena semente seja plantada, e que da próxima vez que um balé volte ao repertório, nosso nome apareça. Nunca sabemos o que está por vir, e cada bailarino espera pelos mesmos papeis, sendo todos trabalhadores, talentosos e merecedores. O sonho de uma pessoa se tornando realidade pode significar o colapso da vida de outra...


Les Rendezvous © Andrej Uspenski

Quando um trabalho exige tanta paixão, resiliência, dedicação, e alem de tudo significa abrir mão de seu país, da família, de seguir outros planos, ele se torna mesmo uma missão de vida. Francamente, pode facilmente se tornar uma obsessão. Tudo o que queremos é saber o que vem a seguir e como continuar progredindo, querendo prever nosso próximo grande momento. Mas a única coisa previsível sobre a vida é sua imprevisibilidade.


O convite inesperado para dançar Le Corsaire no Brasil me veio na hora certa, o que me levou a tirar uma curta licença da companhia (não estava nos planos) mas me deu a chance de estar em casa por um tempo com família e amigos, refletindo sobre tudo mas focando no presente. Era exatamente disso que precisava para redefinir prioridades e perceber o quanto eu estava obcecada com minha carreira, o quanto isto me fazia infeliz.


Ver o trabalho duro e comprometimento dos bailarinos da Cia Jovem Basileu França foi incrivelmente inspirador. Sua ousadia, prazer com a arte e senso de entrega não só me deram a motivação que precisava para continuar trabalhando e investindo em mim mesma, mas também aumentaram minha auto-confiança e me realizaram de muitas maneiras. Percebi que não somente crescia com o desafio técnico, mas tambem por estar compartilhando momentos com estes bailarinos e aprendendo com sua atitude positiva e bravura.


O Corsario com Cicero Gomes

Durante meu tempo fora, pude ter aulas particulares com minha mãe. Ela foi bailarina e tem escola há 45 anos na zona norte de São Paulo. Durante toda a minha vida, senti que não consegui apreciá-la como treinadora, não suportava que ela me corrigisse nas aulas porque ela sempre soube identificar minhas vulnerabilidades. Ainda luto para controlar minha fúria e aceitar seus comentários sobre minhas performances (honestamente, ela nem sempre escolhe os melhores momentos para "ajudar"), mas finalmente amadureci e abri meus olhos para o fato de que o que mais precisava estava bem debaixo do meu nariz: sua experiência, confiança, orientação e amor incondicional.


Três semanas depois, me sentia mais forte tecnicamente, mais "para cima", liberta de antigos medos e preparada para enfrentar os desafios que surgiriam com quatro noites consecutivas de espetaculos pela frente. Enquanto minha mãe me ajudava no trabalho técnico e artistico, a treinadora Greice Kerche trabalhava na minha resistência e fortalecimento do corpo e mente.


Com minha mãe no Ballet Marcia Lago

Quando precisamos ser relembrados constantemente do quão privilegiado somos por ter um trabalho tão incrível, por estar no melhor lugar onde tantos gostariam de estar, tudo indica que que algo está errado. Sentir-se sem apoio e desvalorizado é uma coisa, mas sentir-se fraco, inadequado e sem esperanças significa que é hora de trabalhar e redescobrir seu verdadeiro valor. Algumas coisas estao sim sob nosso controle, como nosso foco e o quanto estamos dispostos a nos doar e a lutar, e isto já é uma grande habilidade.


Quando me sinto dona dos meus atos e pensamentos e consigo direcionar minha própria vida, me sinto fortalecida e capaz de qualquer coisa. É tão fácil culpar os outros ou circunstâncias ruins pela nossa infelicidade quando na verdade temos uma escolha sobre como lidar com situações dificeis e como reagir. Somos responsáveis ​​por nós mesmos. Sempre há algo a ser feito para que possamos mudar nossa percepção das coisas, redefinir nossos valores, o que certamente levará a ações positivas.


Nada nem ninguém pode nos impedir de criar nosso próprio caminho. Cabe a nós abrir mão de cenários e expectativas ideais, abraçar quaisquer obstáculos, trabalhar em climas bons e ruins, ter a mente aberta para os resultados e seguir nossos princípios. Minha jornada tem sido sobre encontrar uma força interior para continuar, disposição para crescer e me beneficiar de novas experiências, o que envolve ser corajosa e trabalhar honestamente, estar pronta para admitir quaisquer falhas ou erros.


Autumn Fairy in Cinderella © dancersdiary

Apesar do tempo e trabalho incansável, se você realmente gosta de algo, vai querer melhorar sempre. E se deseja muito, não desista. Acredite em seu pressentimento, aquela voz interior que continua chamando você de volta. Acredite em sua disposição de se dedicar, apareça mesmo se estiver cansado ou enjoado disso. Trabalhe em seus pensamentos, sua mente, seu espírito e não perca de vista as coisas mais importantes: família, amizade, a construção de vínculos, amor e o impacto que você pode ter na vida de outras pessoas.


“A maneira de dar sentido à sua vida é se dedicar a amar os outros, se dedicar à comunidade ao seu redor e se dedicar a criar algo que lhe dê um propósito e significado.” Álbum Mitch


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1 Comment


Ana Carla Facchinato
Ana Carla Facchinato
Dec 13

Este texto vai muito além da experiência de uma bailarina ! Ele cabe para qualquer um que esteja em momentos de auto questionamentos ! Te admiro demais e cada dia mais! Obrigada por compartilhar esses detalhes da sua trajetória !

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