Descobrindo o País das Maravilhas
- Isabella Gasparini
- 6 de jul.
- 6 min de leitura
Atualizado: 7 de jul.
Em meados de outubro do ano passado, tirei uma breve licença do trabalho para passar um mês no meu país natal, o Brasil. Os bailarinos do Royal Ballet nunca conseguem priorizar projetos externos porque emendamos uma produção a outra, mas quando fui convidada para me apresentar em Goiânia, pareceu-me uma oportunidade única e um momento crucial para retornar às minhas raízes. No fim, meu desejo foi atendido e, em poucos dias, de volta ao Brasil, soube que tinha feito a escolha certa.
Sentada no abafado camarim do Teatro Basileu França, me preparava para minha primeira apresentação como convidada especial da Companhia Júnior quando ouvi o celular vibrar. Era um e-mail do meu diretor em Londres me desejando boa sorte para a estreia daquela noite, o que achei muito gentil de sua parte, e tambem trazia uma noticia importante ... logo nas ultimas linhas havia uma nota confidencial me informando que eu interpretaria o papel-título na obra de arte de Christopher Wheeldon, Alice no País das Maravilhas!!!

Sinceramente, minha reação inicial foi uma mistura de emoções... choque, descrença, felicidade, entusiasmo, raiva... ainda estava magoada por ter tido que me afastar da Royal Opera House, um lugar que realmente amo e ao qual me dediquei durante a maior parte dos meus dezoito anos de carreira, para poder me colocar "de volta nos trilhos". Por um momento, me perguntei se havia sido escolhida apenas por ter conseguido me impor, e se sim, seria isso algo ruim?
Logo no início da temporada, meu nome constava no elenco como "aprendiz" do papel de Alice. Empolgada, fui a todos os ensaios, certificando-me de aprender tudo o que podia e me esforçando ao máximo no cantinho do estúdio, na esperança de um dia poder interpretá-lo. No fundo, sabia que seria um papel que eu iria AMAR representar e com o qual me divertiria muito, mas antes que a produção subisse ao palco para suas primeiras vinte e tantas apresentações, eu havia partido para o Brasil, decepcionada por ter que escolher entre isso ou aquilo, mas animada por buscar uma nova aventura.

Foi só quando voltei ao cenário londrino, nas primeiras semanas de novembro, que percebi a diferença que o treino técnico de minha mãe e influências externas fizeram na minha autoestima e motivação. Mergulhei no mundo mágico das fadas em Cinderella de Frederick Ashton, enquanto silenciosamente reconhecia aquela nova e maravilhosa liberdade artística, nosso teatro e público incríveis, e como, nos últimos anos, não fui capaz de apreciá-los tanto quanto gostaria.
Aqui na Inglaterra dizem que a distância torna o coração mais afetuoso, mas não foi só isso. Além de voltar com um entusiasmo renovado (secretamente me perguntando quem seria meu partner, o Knave of Hearts), comecei a me importar mais em me divertir e menos com coisas que não podia controlar.
Ao invés de ser tão dura comigo mesma, achando que deveria ser melhor ou alcançar mais, concentrei-me na liberdade e na felicidade que queria sentir dançando e corri atrás do que meu coração mais desejava, deixando-o se encher de gratidão e amor pelo que faço. Esse foi o início de um processo que seria fundamental para que pudesse aproveitar e curtir minhas apresentações.

Em meio aos ensaios para Symphony in C de Balanchine e às apresentações de Light of Passage (Crystal Pite) e Romeu e Julieta (MacMillan), chegara a hora de me preparar para uma próxima aventura: a Gala Nureyev & Friends, que aconteceria em Hong Kong em meados de março. Dançaria Le Corsaire e La Sylphide pas de deuxs com partner Luca Acri e convidados da Ópera de Paris, Hamburgo, Maryinski, Balé Nacional Holandês e Finlandês, e a artista internacional Alina Cojocaru.
Foi uma grande conquista dançar um repertório difícil ao lado de tantas estrelas! Para minha surpresa, esses artistas incríveis compartilhavam as mesmas inseguranças que eu, e pude aprender muito com eles. O espetaculo foi uma bonita homenagem a Nureyev que reavivou em mim a importância da arte e da autenticidade acima da perfeição. O balé clássico só sobreviverá se compartilharmos amor, compaixão e emoção verdadeira.
Senti-me muito apreciada pelo público de Hong Kong e muito apoiada pelos organizadores do evento, especialmente por Chun Wing Lam, solista do Balé da Ópera de Paris, e pelo produtor da D&D Arts, David Makhateli, quem me contratou.
Quando decidimos fazer algo desafiador, queremos ter certeza de que teremos sucesso, mas às vezes você só descobre sua força quando se arrisca. Precisa se dedicar e acreditar que todo o seu trabalho valerá a pena, simplesmente dar o seu melhor e confiar que se preparou da melhor maneira possível.
Podemos pensar que a preparação para um papel começa quando se aprende os primeiros passos do balé, mas começa bem antes disso. Para mim, ela iniciou meses e meses antes do meu primeiro ensaio "oficial" de Alice, um trabalho que continuaria além do meu primeiro ensaio geral ou apresentação.

Todas as manhãs, ao entrarmos no estúdio para começar o dia, temos a oportunidade de trabalhar em nós mesmos, em nossa técnica, preocupações e imperfeições... é nas aulas de balé do dia a dia onde o verdadeiro trabalho acontece, e ainda mais importante, é nos nossos pensamentos e atitudes diários, no treinamento da nossa mente para estarmos presentes.
Eu sabia que a preparação física seria essencial – Alice é um papel técnico e que nos permite pouco tempo para descansar entre as cenas, ou tomar um gole d'água, e absolutamente nenhum tempo para trocar de sapatilhas – mas muitas vezes subestimamos o poder da mente e o quão preparado psicologicamente é preciso estar para enfrentar uma responsabilidade tão grande, e ter força para continuar acreditando em si mesmo durante um processo onde tantas vozes e opiniões coordenam o que fazer e como fazer.
O que eu mais queria era entender a personagem - Alice - para descobrir o que poderia fazer para torná-la autêntica, curiosa e engraçada, e contar sua história com cada milimetro do meu corpo e alma.

Muitas vezes encontro força e inspiração na vida cotidiana, em conversas com amigos, em viagens, e na leitura de bons livros. Cerca de um mês depois de começar a ensaiar Alice, andava meio frustrada e com a sensação de que faltava algo à minha interpretação. Encontrei uma lista de ótimas leituras em Oprah's book club e comprei a autobiografia da atriz americana Viola Davis, "Finding Me". Ao ler a história dela, algo mudou em mim e todas as frustrações se dissiparam, me identifiquei muito com sua luta para superar as circunstâncias, a integridade e amor por sua arte, e com suas conquistas tardias.
Sua jornada pela vida atraves da atuação iluminou um caminho para que eu também encontrasse minha própria 'voz' e criasse uma personagem autêntica, que abrangesse tudo o que sou e vivi. Apenas precisava ser eu mesma! Dançar é sobre criatividade, liberdade, e é a vida que molda quem somos como artistas. Por que esconder nossas inseguranças quando podemos usá-las? Por que temer o desconhecido quando não temos nada a perder?
"Você traz tudo o que é para um personagem. Você traz memórias, você traz triunfos, você traz dor, você traz inseguranças. É isso que torna um personagem humano." – V.D.
Assim que me permiti ser uma Alice imperfeita mas genuína, pude usar todas as minhas incertezas como combustível. Afinal, não estava mais fingindo ser ninguem. Estava contando a minha verdade. Todos nós já nos sentimos um pouco perdidos na vida, incertos sobre qual caminho seguir, sobre o que é ou não realidade, enganados por quem mais confiamos, em busca de familiaridade, descobrindo o amor!!

Como posso realmente acreditar no meu valor como artista? Onde encontro coragem para fazer coisas que temo? Devo continuar a me superar ou me sentir satisfeita? O que realmente quero da vida e para onde esse caminho está me levando?
Tentando encontrar estas respostas, ou um propósito, descobri meu lugar no País das Maravilhas! Acreditei que tudo ficaria bem, apesar de dores, machucados, trocas de partner de última hora... e tudo foi mais do que bem. Foi mágico!!! Tive dois parceiros maravilhosos cuidando de mim com quem senti que pude me conectar profundamente.

O momento para minha Alice foi perfeito, e a atriz/escritora Viola descreve esse sentimento melhor do que eu jamais conseguiria:
Pela primeira vez, experimentei a sensação de saber que você merece algo. Não a sensação de ser a melhor, de jeito nenhum. Mas sim como se o seu trabalho árduo ao longo dos anos tivesse significado algo e se amalgamado neste momento "perfeito".
Tornar-me uma artista no verdadeiro sentido da palavra, isso é o que mais quero para mim, e nesse processo mágico de transformação e criação, você começa a acreditar que pode sim ser o que sempre quis (e soube) ser.

Isabella, que estória.
Não sei se você se lembra de mim, sou mãe da Catarina Schatzman, que estudou na escola da sua mãe por um tempo… te conheci ali e desde então te admiro.
Depois de ler este relato, te admiro ainda mais… que guerreira.
O mundo do ballet é cruel e é preciso força e muita persistência para não desistir de tudo.
Resiliência é seu nome.
Você é Força em forma de delicadeza e quem te vê no palco, não imagina tudo pelo o que você passou.
Ver Catarina dançando com você em Copelia foi uma das maiores emoções da minha vida, presente que sua mãe me deu, saiba que te admiro demais, torço muito mais por você e…
Nossa Isabella que texto profundo. Que texto corajoso. Tem momentos que duvidamos de tudo por a gente cansa agente não entende e sim buscar forças externas as vezes faz muito sentido e até mesmo para quem nunca imaginou que faríamos isto. Parabens! Continue cuidando da técnica e da mente e muitas " Alices" em sua vida.