Há tantos mistérios que giram em torno da vida de uma bailarina. O que estaria por trás dos bastidores fazendo a magia acontecer no palco? Quantas horas por dia treinamos? Como é nossa rotina? O que comemos? Como nos preparamos para uma apresentação? É algo enigmático, onde muito do trabalho que fazemos permanece oculto aos olhos do público, assim como em outras formas de arte. O que apresentamos é apenas o produto final.
Talvez seja por isso que o World Ballet Day (Dia Mundial do Ballet) se tornou tão popular, pois abre uma janela para o dia-a-dia dos bailarinos dentro de algumas das mais prestigiadas companhias de dança. No entanto, ainda assim é uma visão limitada. Pulamos algumas etapas do processo e apresentamos coisas que estão mais ou menos nos estágios finais de seus ensaios. Bailarinos e professores estão todos comportados. Na verdade ja passamos por muitas tentativas e erros, falhas e tombos, mesmo os melhores profissionais.
Se estivéssemos observando um pintor, acredito que primeiro o veríamos fazendo rascunhos e esboços a lápis, linhas sendo desenhadas em uma tela em branco, tintas de diversas cores e espessuras sendo adicionadas ... Se fossemos ainda mais fundo, perguntaríamos a ele o que o inspira a pintar, como ele apura sua técnica, e quais são seus maiores contratempos? O que vemos nos ensaios transmitidos pela internet é como se fosse uma imagem já colorida, nosso trabalho em estágios de refinamento logo antes de subirmos ao palco. O maior esforço acontece nas entrelinhas, todos os dias, e começa na barra!
Cada exercício da barra é feito para nos aquecer para algo especifico, seja um simples pas de bourre ou um grande salto. E o mais importante: é ali na barra que você se posiciona corretamente (dizemos que nos coloca “sobre nossas pernas”) para todos os giros, saltos, e equilíbrios que a dança exige.
Fazemos pequenas variações de pliés, tendus , jetés, rond de jambés, frappés, fondus, adages e grand battement desde que nos conhecemos por bailarinos! No centro, temos novamente os adágios, piruetas, saltos pequenos que gradualmente evoluem para grandes saltos e, se o tempo permitir, uma coda de fouettes e manage.
A aula aumenta em dificuldade, energia e velocidade. Não é apenas um exercício para o corpo; a mente também está sendo treinada.
Cada professor de balé tem seu estilo de aula. Fazem diferentes combinações de passos, seguindo uma ordem exata e progressiva, adequada a uma determinada metodologia e enfatizando o que consideram essencial. Cada um tem suas próprias abordagens e as aulas podem diferir em andamento e dinâmica.
Em tempos de pandemia, fomos separados em grupos e às vezes fazemos aula em uma sala sem professor. A aula é filmada e transmitida do estúdio Ashton para outros. Pois bem, um dia nossa televisão quebrou e mesmo sem imagem nenhuma o nosso grupo conseguiu pegar os exercícios e fazer a aula inteira apenas com a voz e instruções do professor, sendo conduzido pela música e pelo nosso profissionalismo.
Se fazemos a mesma coisa todos os dias, significa que podemos entrar no modo piloto automático? Mas é claro que não. Os bailarinos precisam cultivar uma conexão corpo e mente, estar muito atentos ao que estão fazendo para criarem uma espécie de memória muscular e termos a certeza de que as coisas vão fluir sempre! Pessoalmente, não acredito em "sorte" no palco. Em sala de aula, estamos essencialmente praticando os passos que iremos realizar, de uma forma ou outra, em uma apresentação. Precisamos nos agarrar a técnica, especialmente abalados pelo nosso estado emocional.
As aulas existem para criarmos força muscular, coordenação e confiança em nossas habilidades, entre outras coisas. A maioria dos bailarinos chega a sala de aula meia hora ou mais antes da aula começar para começar a se aquecer. Aqui alguns gostam de correr na bicicleta, fazer exercícios de pilates ou alongamento, mas isso por si só não poderia nos preparar para as demandas físicas do balé clássico.
Sempre acreditei que as aulas são cruciais para uma carreira saudável e de sucesso. Especialmente na vida profissional, podem ser a única maneira de mantermos nossa técnica e "mal hábitos' sob controle. Adoraria poder dizer que aulas são sempre tão animadas e inspiradoras quanto se vê no World Ballet Day, mas é impossível manter esse nível de energia durante uma temporada agitada. Porem, sempre há algo positivo que podemos tirar delas, mesmo sentindo-nos exaustos.
A verdade é que quando estamos a portas fechadas, a aula de balé é um momento de tranquilidade, de total concentração em nós mesmos. É muito mais interno do que uma vitrine de truques e habilidades (a menos que alguém importante esteja assistindo na frente da sala). É muito mais uma espécie de meditação, uma maneira de se concentrar na respiração e se conectar com suas emoções, para certificarmo-nos de que corpo e mente estão em ordem. Queremos estar dançando de maneira orgânica, e não mecânica.
É preciso muito carinho e amor. Se abordarmos o balé como um exercício espiritual além de físico, não nos concentraríamos tanto em nossa aparência, mas em como a dança te faz sentir por dentro. Mover ao som de uma bela música clássica... isso por si só pode ser tudo o que preciso para trazer de volta um pouco de energia e positividade aos meus dias.
Treinar é uma parte vital do balé, mas não haveriam espetáculos sem os ensaios. Não importa há quanto tempo dance profissionalmente, precisará de muitos ensaios para se preparar um papel. Isso faz parte do nosso trabalho ... aprender os passos, repeti-los várias vezes, ver o que funciona e o que não funciona para cada indivíduo, coordenar levantadas e pegadas com seu partner, descobrir quando dar o gás e quando recuperar o fôlego, além de se trabalhar na interpretação e encontrar o personagem dentro de você.
Ao meu ver, a única maneira de conseguirmos resistência e fôlego é executando cada número ou coreografia do início ao fim. Não importa se venho dançando quatro atos de O Lago dos Cisnes há semanas, provavelmente me sentirei sem fôlego quando começar a ensaiar outro ballet. Nunca entendi isso, mas é fato! É como se tivéssemos que aprender a respirar de maneira diferente para cada ballet que fazemos.
Frequentemente, os bailarinos dizem aqui que não há tempo suficiente de ensaio. Nós nunca nos sentimos prontos.
Muitas vezes me pergunto por que danço tão bem quando sou pega de surpresa e posta pra fazer algo inesperado quando nem ensaiei de verdade, mas suspeito que seja porque sou guiada pelos meus instintos e tudo flui naturalmente. Não sei o que esperar, por isso não tenho medo. No minuto em que começo a praticar demais, crio expectativas e analiso demais os passos. Crio monstros em minha cabeça. Não faz sentido, mas por mais estranho que pareça, isso acontece muito e acho que não só comigo.
Um bailarino profissional aprende a lidar com esses dias em que está um pouco mais vulnerável. Alguns ensaios podem ser maravilhosos, outros bem frustrantes. O corpo está tenso ou cansado, você se sente completamente fora do equilíbrio, sua cabeça está nas nuvens. Com o tempo, entendi que é natural termos dias bons e dias ruins na dança, assim como no dia-a-dia. Espero a sensação ruim passar, sem criar expectativas de que tudo saia perfeito, e percebo cada vez mais como nossos humor pode desempenhar um papel vital em como dançamos e o quão satisfeitos estamos.
Nem sempre as coisas saem como o planejado, e é para isso também que servem os ensaios: para aprendermos a arte de improvisar, de não deixar o público perceber que algo não deu certo ou que se sente meio esquisito aquele dia. Isso, para mim, tornou-se a maior diferença entre um bailarino inexperiente e um maduro. Grandes bailarinos sempre me pareceram perfeitos, mas agora sei que até eles têm seus dias difíceis, só que são muito bons em mascara-los. A verdade final: quanto mais você desempenha um papel, mais confortável se sente e mais confia em si mesmo para ser capaz de executa-lo.
A autoconfiança é a chave de tudo.
Para mim, dançar é uma jornada de autodescoberta, algo tão emocional quanto físico que vai além do que os olhos podem ver. É preciso fazer escolhas, seguir sua intuição e ter fé absoluta. A dança me tira de minha zona de conforto e me ensina mais sobre mim do que qualquer outra coisa. Como vou reagir hoje? Como posso permanecer positiva? Com tantos anos de treinamento e experiência, deveríamos ser capazes de dominar tudo com bastante facilidade, mas há muita coisa acontecendo dentro de nossas cabeças que nos bloqueiam fisicamente. Ensaios são oportunidades de superar nossos medos e inseguranças, de treinar nossa mente e corpo, permitir-nos falhar para aprender com nossos erros.
Sempre gostei de descobrir o que outros fazem para se destacarem na sua área de trabalho, observo que tipo de vida levam. Um dos meus filmes favoritos quando criança foi Nadia (1984), a história da ginasta romena Nadia Comaneci, desde o início de seu treinamento na infância até receber sete “10s perfeitos” nas Olimpíadas de Montreal. O que gostava no filme era ver seu treinamento intenso e concentração, como Nádia agarrou uma oportunidade e fez história, e principalmente admirar o vínculo que ela cria com seu treinador, Bela Karolyi. É o tipo de relacionamento que construí com a mestra Toshie Kobayashi, e algo que aprecio e procuro construir onde quer que eu esteja. Dona Toshie, aquela que sempre dizia que as aulas de balé são sagradas.
Acredito que por trás de todo campeão, existe um grande treinador e um forte sistema de suporte.
Um vislumbre dessa realidade, do nosso meio de sobrevivência, torna grandes conquistas mais “reais” e tangíveis. World Ballet Day nos mostra o esforço físico de cada um, como cada bailarino e cada companhia são únicos, mas nosso trabalho vai muito além disso. Como profissionais, cada um assume responsabilidade pela saúde e por nossos hábitos. Todos trabalhamos duro e esperamos que nossos esforços dêem frutos. Queremos ser os melhores bailarinos que podemos ser, fazer o que sentimos estar ao nosso alcance e talvez além. Certamente é por isso que me esforço todos os dias.
"Até que abra suas asas, não terá ideia de quão longe pode voar." - Napoleão
Nadia Comaneci aos 14 anos em Montreal (1976).
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