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Fé & Gratidão

A vida na Royal Opera House é feita de uma demanda contínua pela excelência. Seja por estresse ou por mero cansaço, no inverno é quando estamos mais vulneráveis e propensos a lesões e doenças. Os nomes nos papéis de elenco são rabiscados por toda parte com caneta vermelha, sendo substituídos por outros, e num piscar de olhos, é Natal! Ou seja, inicia-se a maratona de O Quebra Nozes.


Geralmente, este é o período mais corrido e lucrativo para qualquer companhia de balé, e não é diferente aqui no Royal Ballet. Com o aumento gradual de trabalho desde a abertura da temporada com Dom Quixote, em meados de Outubro, não houve um momento para recuperar o fôlego. Por isso damos as boas-vindas aos alunos da Royal Ballet School que veem nos socorrer, bem como duas novas bailarinas, Grace Reid e Poppy Frankel, que se juntam a companhia num contrato de curto prazo, tal como tudo começou para mim há dez anos atrás.


Amour em Don Quixote © Andrej Uspenski

Passei os últimos meses de 2013 trabalhando como freelancer no New English Ballet Theatre (NEBT), uma pequena companhia fundada com o intuito de “resolver uma aparente falta de oportunidades de carreira para bailarinos e coreógrafos emergentes”. Também atuei no English National Ballet e, antes disso, passei quase seis anos dançando com o Northern Ballet. Mesmo tendo alguma experiência profissional, fiquei absolutamente emocionada por ser contratada como bailarina “extra” no Royal, tipo uma estagiária. Não me importava quando ou o que estava fazendo, desde que me considerassem um bom elemento para a companhia. O fato de estar me apresentando em Covent Garden já parecia um milagre.


Mas com o passar relâmpago dos anos e temporadas veio o cansaço de estar no palco todas as noites e ensaiando outras mil coisas durante o dia, uma sobrecarga de trabalho que é realmente impossível de descrever. Também percebi que queria mais para mim, queria continuar crescendo e me desenvolvendo como bailarina. Logo me vi desejando papéis de destaque, ansiosa cada vez que um novo elenco aparecia no quadro de avisos, frustrada por não ter sido escolhida para uma nova coreografia e, o pior de tudo, sentindo que não era boa o suficiente para realizar tudo o que meu coraçãozinho almejava.


O Lago dos Cisnes, 2015.

Assim é a vida, esperamos cada vez mais de nós mesmos e dos outros, e coisas que antes mais desejávamos logo se tornam “normais”. É difícil mantermos um sentimento de gratidão e uma atitude positiva quando estamos exaustos. Todos caímos no hábito de reclamar e sofrer por pequenos “infortúnios”, mas a gratidão nos permite enxerga-los como oportunidades em disfarce. Vemos o lado bom das coisas, mesmo quando tudo não corre exatamente como planejado. Entendemos que poderia ser pior, e que tudo tem sua hora.


Os dias na vida de um bailarino nunca são iguais. Assim como o nosso humor, sempre oscilando de bom para ruim, nossa visão sobre o futuro e nosso progresso também muda. Deparamos com um obstáculo em cada esquina, mas cada superação nos dá forças para acreditarmos em nós mesmos e seguirmos em frente. Não importa quão distante pareça o sonho, basta uma faisca de esperança que desperte nossa auto-confiança para que este sonho se materialize dentro de nós. E então, tudo parece simples e atingível.


Aurora com meus 13 anos em SP.

Começo minha décima temporada com o Royal Ballet como Primeira Solista. Cada momento em que subo ao palco parece ainda mais especial porque são menos frequentes, e o privilégio de estar nesta posição é algo que espero nunca considerar garantido. Ao longo dos anos aprendi a valorizar minha jornada, desde o inicio do balé na escola de dança de minha mãe em São Paulo, até conseguir uma bolsa de estudos para a Escola Nacional de Ballet do Canadá e me mudar para a Inglaterra aos dezoito anos para construir uma carreira. Aprendi a viver a vida sabendo que ela é imprevisível, e que a felicidade somos nós que construimos. Enquanto mantivermos a e encontrarmos maneiras de confiar em nós mesmos, iremos longe.


Quando as coisas ficam complicadas, tudo que preciso é de um pequeno lembrete de quão longe cheguei e onde está meu verdadeiro propósito. Em uma entrevista com David Bain e The Ballet Association em outubro passado, o Sr. Bain me perguntou como foi, há dez anos, finalmente descobrir que eu tinha ganho um contrato permanente com a Royal, e meus olhos se encheram de lágrimas só de pensar. Lembro-me de estar subindo até o camarim depois de uma apresentação de A Bela Adormecida quando vi o Kevin O'Hare – o diretor artístico – vindo em minha direção. Ele me olhou todo sorridente e disse: 'Você gostaria de ficar conosco?'


Mercedes em Don Quixote © Andrej Uspenski

Pensar naquele momento encheu meu coração de gratidão, pois me lembrou o quanto esse emprego significa para mim. Às vezes, tudo o que nos falta é perspectiva, uma palavra de agradecimento, alguém que nos lembre de como somos afortunados e especiais como companhia e como indivíduos.


Agradeço a todos que de uma forma ou outra me apoiaram ou me fizeram crescer na direção dos meus sonhos, e aqueles que fazem parte desta busca contínua por auto-conhecimento, superação, e paz interior.



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