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'Jeitinho brasileiro'

Passava um dia como qualquer outro na casa da vovó em São Paulo quando minha mãe chegou com uma revista para me mostrar. Logo no topo de uma pequena coluna da VEJA, a manchete dizia algo como: ' Carioca Roberta Marquez se torna Primeira bailarina do Ballet Real de Londres '. Segurei-a nas mãos e olhei fixamente para a foto de Roberta, digerindo aquela notícia. Aquilo, para mim, deveria ter sido capa da revista!! Uma bailarina brasileira de 27 anos conseguira se infiltrar não apenas em uma das maiores companhias europeias, mas como primeiríssima do ROYAL BALLET! Nunca pensei que isso fosse possível.


Antes de Roberta, eu não tinha ouvido falar de muitos brasileiros que haviam seguido carreira na Europa. Marcia Haydée, a musa do coreógrafo John Cranko em Stuttgart, foi talvez a única que tomava como referência. Um sentimento misto de felicidade, orgulho e desejo tomou conta de mim. Lembro-me de ficar tão fixada no insignificante fato de Roberta ser bem pequena, medindo 1'56m. Assim como eu! - pensei. Eram dessas que a companhia gostava?


Roberta Marquez como Aurora 2006 © ROH

Minha jornada seria bem diferente. Roberta havia se tornado primeira bailarina do Ballet do Teatro Municipal do Rio em 2002 quando seu talento foi descoberto por Natalia Makarova numa montagem de La Bayadere. Dois anos depois, seria chamada para substituir uma bailarina machucada no Royal Ballet e se apresentar como convidada em A Bela Adormecida, o que a levou a assumir um cargo permanente. Entendo agora que o esforço, os sacrifícios, o trabalho duro ... essas etapas não são sempre mencionadas. Aquele minúsculo artigo de revista me pareceu um conto de fadas, como se o emprego tivesse caído de paraquedas para que a pessoa mais sortuda o agarrasse. Mas nada é tão simples.


Aos quatorze anos, eu nunca nem tinha ouvido falar em Y.A.G.P. ou Prix de Lausanne, competições internacionais que hoje em dia geram um imenso intercâmbio de talentos e um cenário tão multicultural nas escolas e companhias de dança pelo mundo. Antes, era raro encontrar bailarinos brasileiros no exterior. Fiquei pensando ... como ela conseguiu tal feito? Queria descobrir sua formação, sua vida, e procurava por quaisquer semelhanças, quaisquer sinais de que eu também poderia ter sucesso.


Conhecer Roberta pessoalmente foi um daqueles momentos mágicos da vida. Ao vê-la fazendo seus exercícios no centro, fiquei completamente fascinada. Era ainda menor do que havia imaginado, uma pequena bailarina daquelas de caixinha de música. Respirando fundo, apresentei-me a ela, que respondeu:


' AH! Você também é brasileira? Seja bem-vinda! '


Existe uma afinidade instantânea quando você descobre que a pessoa é do mesmo país que você, que fala a sua língua, compartilha sua cultura e entende de quão longe você veio. Eu era um peixinho a nadar num vasto oceano, e vendo outros brasileiros ao meu redor, sentia-me mais segura e confortada.


Ao lado de Leticia Stock e Mayara Magri (frente a direita), ambas do Rio de Janeiro.

A primeira coisa que pergunto àqueles que acabam de entrar na companhia é 'De onde você é? '. Para mim, a nacionalidade pode dizer muito mais sobre um bailarino do que qualquer outro detalhe de sua vida. Latino? Eu sou da América do Sul! Ah Portugal? Eu também falo português! Além de apaixonados pela dança, o que mais temos em comum? Ao descobrir que viemos do mesmo país, criamos uma forte conexão, uma compreensão mútua das dificuldades e desafios que enfrentamos para estar ali. Você reconhece que, antes de mais nada, aquele brasileiro é um sonhador e lutador, assim como você.

Isso chega a ir além da praticidade de se falar uma primeira língua. Eu poderia falar mais português se quisesse, mas por ter vivido longe por tanto tempo, acho difícil lembrar algumas palavras em uma conversa e acabo falando um portuglês. Trocamos muito as palavras quando conversamos entre brasileiros na companhia, o que é péssimo! Meu português está piorando cada vez mais, enquanto meu inglês não é perfeito, tampouco chegará a ser tão natural como uma primeira língua.


Artigo do The Dancing Times - Setembro 2018

Até ingressar no Royal Ballet, havia trabalhado com apenas dois brasileiros, um deles o mestre de balé e coreógrafo Daniel de Andrade, que há muito tempo já vivia na Europa. Tive a sorte de ter dançado com Luisa Rocco, a pessoa mais doce do mundo! Ela também era do interior de São Paulo e já havia dançado em Estocolmo antes de ingressar no Northern Ballet na minha terceira (ou seria quarta?) temporada. Duas brasileiras ingressaram na companhia logo após a minha saída: a cativante Natalia Kerner, de Fortaleza, e Nina Queiroz da Silva, paulista.

Nina e eu nos conhecemos pessoalmente em Londres, num breve intervalo entre meus ensaios, saboreando um café no Bageriet, um dos meus lugares favoritos em Covent Garden. Naquele pequeno espaço de tempo, conseguimos falar sobre nossas carreiras, compartilhar experiências e perspectivas para o futuro, pensamentos em como encontrar a felicidade e permanecer fiel a quem somos, ter fé em um Poder Superior, confiar nas coincidências, e falar sobre nossos mais preciosos valores. Parecia que eu a conhecia desde sempre.



Roberta Marquez, Thiago Soares, Erico Montes, Leticia Stock, e Mayara Magri. Quando entrei no Royal Ballet, o Brasil já estava tão bem representado que cheguei a pensar O que poderiam querer com mais uma?! Eu seria a última de minha geração, mas mais brasileiros estariam por vir: Letícia Dias chegou logo em seguida, e Denilson Almeida acaba de ingressar nesta temporada. Daniel Camargo, brilhante bailarino formado em Stuttgart e promovido rapidamente a principal (atualmente freelance), faria uma aparição especial como convidado, assim como o coreógrafo Juliano Nunes, cuja carreira começou em outra companhia alemã, a Karslruhe Ballet, onde descobri por acaso, ha alguns anos atrás, que quase um terço de seus bailarinos eram do Brasil (até reencontrei bailarinos com quem costumava competir em São Paulo quando criança).


Logo aqui ao lado, minha vizinha de trabalho, encontro Carolyne Galvao em sua terceira temporada com o English National Ballet, onde também costumavam dançar os gêmeos Guilherme e Vitor Menezes, outros dois de minha geração. Após uma carreira de sucesso aqui na Inglaterra, hoje dançam no Ballet Real da Dinamarca. Foram tão carinhosos comigo quando os encontrei anos atrás aqui em Londres... estarei sempre a torcer por eles.


Backstage em La Bayadere com Ashley Dean, Chi Katsura, e Leticia Dias (esq a dir).

Na minha adolescência, me inspirei nas carreiras de Erico e Leticia Stock, bailarinos cuja jornada segui desde que saíram do Brasil e ingressaram na Royal Ballet School. De lá, passaram direto para a companhia. Para mim, eles eram 'os escolhidos'. Não conhecia mais ninguém que tivesse ido estudar balé no exterior.

Eu era bem novinha quando Erico e eu costumávamos nos apresentar nos festivais RV Promoções, e mesmo não me conhecendo muito bem pessoalmente, ele me recebeu em sua casa, oferecendo um lugar para minha primeira estadia aqui em Londres. Leti Stock, da Escola Maria Olenewa no Rio, me impressionou desde que a vi fazendo a variação de Talismã em Belo Horizonte (devia ter onze ou doze anos). Pernas longas, físico incrível!! Nunca tinha visto linhas tão bonitas, e que qualidade de movimento!


"Eu não sou ufanista, nacionalista ou bairrista. Não acredito, sinceramente, que ter nascido em determinado lugar faz alguém ser especial, ou o contrário. Eu admiro quem consegue o seu espaço com dedicação e talento, não importa de onde tenha vindo. Por outro lado, ao encontrar pessoas do mesmo lugar que nós, temos a sensação de pertencimento. A gente se reconhece. Sendo assim, o objetivo é que essas histórias nos inspirem, tanto no ballet quanto na vida." – Cassia Pires, Dos Passos da Bailarina

Leti Stock em Viscera © ROH

Durante minha primeira semana no Royal Ballet, Mayara me empurrava para a frente da sala e me mostrava como ser ousada. Queria que eu causasse uma boa impressão no diretor, que nos observava de longe. Ela tomava conta de mim. Mayara é a personificação do espírito brasileiro: alegre, atenciosa, enérgica, ousada, destemida, alguém que faz acontecer, por mais desafiadora que seja a tarefa.


É difícil generalizar, mas acredito que há certas características que tornam o brasileiro muito bem-vindo em uma companhia estrangeira, um tipo especial de energia e carisma. O brasileiro nunca desiste, sempre dá ' um jeitinho '. Porém, ser estrangeiro às vezes tem suas desvantagens.


Precisamos trabalhar duas vezes mais para provar que merecemos as mesmas oportunidades que um nativo, já que a maioria das companhias deseja, com certa razão, empurrar e promover talentos mais perto de casa. Além disso, espera-se que adquiramos uma certa qualidade de movimento, nos adaptemos a um certo estilo, o que não é um problema quando você admira e aspira a se tornar exatamente o tipo Royal Ballet.



Hoje em dia, encontramos tantos bailarinos brasileiros pelo mundo. Meu radar está fixado na Europa, mas há tantos bailarinos na América e, na verdade, em pequenas companhias europeias que ainda estou por descobrir. Tenho amigos dançando em Boston, Nova York e Sao Francisco. Em Copenhague, Estocolmo, Noruega, Berlim, Amsterdã, Stuttgart, e a lista continua. Tendemos a criar um vínculo muito especial e apoiar uns aos outros, mesmo de longe. Sei, por experiência própria, que a jornada de um brasileiro no exterior pode ser muito solitária. É reconfortante sentir-se parte de um grupo, compartilhar a saudade de um país que tanto amamos.


Dançando O Corsario com Irlan Dos Santos, hoje no Boston Ballet.
Encontro em SP com Annete Buvoli, Kevin Emerton, Erico Montes.

Emoção e técnica

Desde que comecei a dançar, me apaixonei pela disciplina e técnica do balé, mas o que realmente amo é interpretar personagens diferentes e contar histórias. Talvez inspirada por Roberta, coloquei em minha cabeça que o lugar onde apreciavam tanto a emoção quanto a técnica era no Royal Ballet. Tive a sensação de que devia ser o lugar para mim, mas para ser um grande bailarino ou se ter uma grande carreira, não significa que você tenha que deixar sua terra natal.


"Quando era mais jovem, eu me preocupava demais com a técnica. Mas ela sozinha não basta. Consigo ver quando alguém está dançando com o corpo, mas sem a cabeça. É o conjunto que faz diferença.” Hoje, ao fazer um balé como Romeu e Julieta, diz “pensar em tudo o que se passa na cabeça dela quando vê Romeu morto”: “Aqui, na Inglaterra, eles dão mais valor à atuação. Às vezes, eu me sinto uma atriz sem falas.”. - Roberta Marquez, Folha de S.Paulo 2010

Há muitos anos atras em "Tico-Tico no Fuba" com Leo Sandoval, hoje sapateador em NY.
Com Thiago Soares e musico Marcelo Bratke em Ilha Bela, SP.

Tenho enorme admiração por aqueles que lutam para manter viva a cena artística no Brasil. Estes são guerreiros ainda maiores do que nós, que conseguimos 'escapar'. O que as companhias estrangeiras têm a oferecer é um maior suporte e infraestrutura. Não há um momento em que sinta falta de estar no palco porque as apresentações continuam acontecendo. O que eu temo hoje é que jovens bailarinos talentosos estejam deixando o país apenas porque esse é o esperado, porque seus amigos o fizeram, e por existirem mais oportunidades agora. Mas será que isso é o que seus corações realmente desejam?

Tenho comemorado e vivido por cada brasileiro que conquistou seu lugar na dança, seja no Brasil ou no exterior, e agradeço a cada brasileiro por ter mantido vivo o meu sonho, por me mostrar o caminho. Temos muito a oferecer, tornamos o palco mais brilhante, não importa onde estejamos.


Com Thiago in Sumaúma, Festival Vermelhos - Julho 2018
Raymonda Act III, The Telegraph - October 2019

Para ler a reportagem de Roberta Marquez na Folha de S.Paulo 2010 (entre outros blogs muito interessantes sobre ballet) visite o blog Dos Passos da bailarina de Cassia Pires ou siga o link:



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