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'Maternidade na dança'

Cresci acreditando que bailarinas tinham que esperar até a aposentadoria para ter filhos, pois dedicar seu corpo e alma à profissão não lhes permitiam tempo de construir uma família. Se isso é mito ou uma realidade do passado, definitivamente não é o caso no século XXI. Ao longo de minha carreira, conheci bailarinas maravilhosas que foram felizes no casamento e tiveram filhos (às vezes mais do que um) enquanto dançavam em seu auge. Além disso, ao retornarem aos palcos, brilhavam mais do que nunca!


Ballerina Alessandra Ferri e suas filhas, 2001.

Muitos dançarinos profissionais que conheço vêm de uma família de pais bailarinos e foram apresentados ao balé ainda no útero de suas mães, inclusive eu. Minha mãe continuou a dançar até estar grávida de três meses, quando o enjoo a atingiu de maneira brusca. Algumas bailarinas continuam fazendo aulas de balé até os estágios mais avançados da gravidez, embora não consigam se apresentar, por razões mais do que óbvias.


Ver seus pequenos sentados nos bastidores da Royal Opera House, os rostinhos iluminando-se enquanto observam mãe (ou pai) se apresentando, não tem preço. Não se pode deixar de imaginar se eles estão se apaixonando pelo balé, se herdaram o mesmo talento. Quando eu era pequena, costumava sentar-me em um canto da sala de balé e assistir minha mãe dando aulas, para depois praticar os passos em casa. Eu não tinha babá, então ela simplesmente me levava junto ao trabalho. Cresci em um ambiente de dança, o que certamente me encorajou a escolher esse caminho.


Minha primeira entrada no palco (mãe gravida de meu irmão).

Vimos neste último ano um número excepcionalmente alto de gestações na companhia. Nada menos que nove bailarinas tiveram bebês desde a pandemia, entre elas minha amiga brasileira de longa data Leticia Stock, que deu à luz a bebê Gi, e a primeira bailarina Lauren Cuthbertson, que deu as boas-vindas à bebê Peggy. Foi tudo planejado? Bailarinas de todo o mundo viram a interrupção dos espetáculos como uma oportunidade?


Não deve ser fácil conciliar trabalho e paternidade, especialmente com as demandas físicas do balé e nossas horas de trabalho imprevisíveis. Não é de surpreender que cinco bailarinas do Royal Ballet recentemente se despediram da companhia, quase todas novas mamães. Não posso falar por experiência própria, mas sempre acreditei que voltar da gravidez seria a parte mais difícil, porem testemunhei minhas colegas se transformarem de volta em bailarinas como num passe de mágica. Agora vejo que o maior desafio, no entanto, é estar dividida entre as responsabilidades do trabalho e suas prioridades como mãe.


Lizzie Harrod se aposentou nessa temporada depois de seu terceiro filho.
Nathalie Harrison (aqui gravida de 7 meses), também aposentada depois de carreira de 18 anos e dois filhos.

Embora eu não faça parte do ‘baby boom’ do Royal Ballet, sinto que também experimentei um pouco dessa maternidade desde a pandemia ao recebemos uma nova adição à família, nosso gatinho Rudi!


Cheguei em casa uma noite, depois de um ensaio tardio de Solo Echo, para encontrar uma coisa minúscula e fofinha enrolada em nossa cozinha. Havíamos terminado de correr o balé e eu nem tomei banho, apenas sai desesperada do teatro para conhecer 'nosso bebê'. Nunca poderia ter imaginado o quão doce e fofo ele seria, e o quão feliz ele nos faria.



Sempre tive cachorros no Brasil. Todos esses anos morando sozinha na Inglaterra, ansiava por um animal de estimação para me fazer companhia, mas meu estilo de vida tornava isso impossível. Fazer parte de uma companhia que faz turnês significava viajar a maior parte do tempo, mas mesmo agora no Royal Ballet, tendo me estabelecido em Londres, significaria deixar o pobre cachorro sozinho o dia todo e contar com muita ajuda, como ambos meu namorado e eu somos bailarinos em tempo integral.



Por estarmos cada vez mais em casa (desde a pandemia), pensamos em arrumar um gatinho, já que eles são muito mais independentes do que os cães. Nunca tive um, mas Kevin cresceu com gatos. Ele agora está se recuperando de uma lesão, o que significa que precisaria de um companheiro para ficar em casa. Isso influenciou muito minha decisão, sem falar no fato de que nossos teatros permaneceram fechados após um ano, e eu ainda tinha minhas noites livres. Só havia um pequeno detalhe ... eu nunca soube cuidar de um gato! Com uma ajudinha do Kevin, eu aprenderia o trabalho no decorrer do tempo, como acredito que mães de primeira viagem fazem.


Rudi é um gato siberiano. Todos pensam que seu nome foi inspirado no bailarino Rudolf Nureyev (seu apelido era Rudi), mas na verdade foi uma coincidência muito grande porque eu brincava em chama-lo de Rodolfo, e no dia em que decidíamos se iríamos ou não adota-lo, vi uma postagem no Instagram celebrando o bailarino Nureyev, e tomei como um sinal de que tanto o nome quanto o filhinho eram perfeitos!



Treze semanas depois (que pareceram durar uma eternidade), o Rudi veio para casa. Ele está com quatro meses e meio agora, muito fofinho e adormece no meu colo a qualquer oportunidade. Ele gosta de caçar brinquedos de penas e se esconder dentro de caixas ou embaixo de tapetes. É dengoso, mas também muito sapeca e brincalhão!

Sempre acordei cedo para ler ou estudar depois do café da manhã, mas agora uso o tempo para brincar com Rudi. Além de pequenas mudanças na rotina e de ter que pensar no que fazer com ele quando quisermos um fim de semana fora, descobri que cuidar de um gatinho não seria tão difícil afinal. Tudo o que ele precisava era ser alimentado três vezes ao dia, uma caixa de areia limpa para suas necessidades, um pouco de amor e atenção e de uma companheira para brincar! Nossa nova vida de paternidade tinha começado muito bem ...



Até que cheguei em casa numa sexta feira à noite e descobri que Rudi tinha vomitado no tapete da sala. Ouvi que gatos vomitam bolas de pelo o tempo todo, então não me preocupei muito, mas três dias depois Rudi ainda não estava bem. Felizmente, tive o dia de folga na segunda-feira e marquei uma consulta com o veterinário. Liguei para um táxi que veio nos buscar, minha primeira vez viajando com o Rudi numa bolsa transportadora, e ele se comportou muito bem. Kevin estava no trabalho naquele dia fazendo reabilitação, e senti aquela responsabilidade por garantir que Rudi estivesse bem.

"Tudo me parece normal", disse o veterinário, "fique de olho nele e certifique-se de que está comendo e bebendo, e que esteja reagindo bem."

Eu queria fazer tantas perguntas, mas por causa das restrições da Covid, não pude nem passar da porta da frente para ficar com Rudi. Esperei na calçada por mais notícias, e só consegui uma breve conversa por telefone com o veterinário.


Depois de uma longa (e estressante) semana de ensaios no palco para o espetáculo ‘Beauty mixed programme’, e muitas viagens ida e volta de taxi para o veterinário, Rudi começou a melhorar, e eu finalmente consegui respirar de novo!



Durante esse período sem saber o que havia de errado, fiquei extremamente preocupada. Um dia, mal consegui ir ao trabalho; terminei a barra e, por não ter ensaios naquela tarde, cancelei todos os compromissos e corri de volta pra casa. Simplesmente não conseguia parar de pensar que havia abandonado meu gatinho doente, sozinho. Isso me fez perceber o quanto nossas prioridades mudam e o que significaria me sentir responsável por outro ser humano. Eu me perguntei como lidaria com as responsabilidades de ser uma mãe de verdade.

Respeito e admiro as mães bailarinas hoje mais do que nunca. Nada se compara a ter um filho recém-nascido em casa, mas acredito que Rudi chegou na hora certa para me ensinar muitas coisas. Quando se trata de gatos, agora sei que eles são extremamente curiosos e que devo ter muito mais cuidado com as plantas, brinquedos, ou qualquer coisa que esteja ao seu alcance. Também aprendi que seu ronronar tem propriedades terapêuticas; pode nos acalmar, diminuir os níveis de estresse e até mesmo promover a cura de tecidos e ossos! O ronronar calmante de Rudi pode ser exatamente o que uma bailarina precisa para se recuperar da rotina de dança.


Ensaiando o pas de deux de Pássaro Azul com Jun.
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