Nos últimos dezessete anos, retornar ao meu país de origem tem sido uma mistura de felicidade e tristeza. No momento em que desembarco no aeroporto de Guarulhos, após um longo e desconfortável vôo (onze horas e meia de Londres, para ser precisa) e encontro meus pais do outro lado, acenando com o maior sorriso no rosto, sinto um alívio indescritível.
Lembro-me de voltar de Toronto pela primeira vez, depois de passar cinco meses estudando fora, e ver uma multidão de rostos familiares me felicitando. Minha família inteira estava lá para a grande recepção: tios, tias, primos, padrinhos, velhos amigos... me parabenizando por ter conseguido passar dessa primeira etapa. Sempre tive a recepção mais calorosa, que naturalmente foi se tornando cada vez menor, mas que continua cheia de grandes emoções.
Tive a sorte de já ter completado quinze anos quando saí do Brasil, pois a maioria dos bailarinos vão para a escola profissionalizante desde os onze anos, mas isso não significa que eu não tenha sentido muita falta da minha família. Nos anos que viriam, aos poucos me ajustaria a esta nova realidade: as idas e vindas, os voos longos, os retornos felizes e as partidas muito sofridas. É difícil acreditar que já moro há mais tempo no exterior do que morei no Brasil.
A certa altura, até me perguntei ... Onde, exatamente, seria minha casa?!
Nunca pensei que sobreviveria a distância, e acho que ninguém nem esperava isso de mim. Fui muito apegada aos meus pais desde pequena, nunca gostei muito de dormir na casa das amigas ou de viagens escolares de fim de semana. Eu mal tinha saído das asas de meus pais nesses quinze anos! Sempre mantivemos um círculo familiar bem próximo na verdade, com tias, tios, primos de primeiro e segundo graus e amigos de infância se reunindo a cada pretexto. Meus pais gostam de uma festinha, e aqueles felizes retornos sempre foram seguidos por um churrasco em casa ou algum tipo de reunião comemorativa. Eu, por outro lado, nunca fui grande fã de festas e devo admitir que, num primeiro momento, sentia-me incomodada de chegar em casa exausta, com o fuso confuso, tendo que dar atenção aos convidados. Mas percebi que era a melhor maneira de garantir rever a todos e que, na verdade, realmente sentia muita falta de calor humano.
Mesmo sendo férias para mim no Brasil, minha agenda costuma ficar sempre lotada! Se não é visitando amigos e familiares (mais fácil vê-los todos de uma vez e evitar decepções), é indo à consultas médicas ou dentista, passando uma tarde inteira no salão de beleza já que tudo é MUITO mais barato no Brasil (uma manicure em Londres custa pelo menos R$150), tendo aulas de balé no Ballet Marcia Lago (a escola da minha mãe) ou mesmo ensaiando para uma apresentação de última hora.
Adoro poder dançar em casa para que a família e amigos possam assistir, e me sinto honrada em ser convidada para fazer participações em festivais, mas logo percebi que ter um descanso adequado em julho (minhas férias de verão) é mais importante e benéfico para minha saúde do que se estivesse constantemente “trabalhando”. Não procuro por maneiras de me apresentar, mas se recebo um convite, é difícil recusar! Também já houveram ocasiões em que voei para o Brasil apenas para me apresentar com o Ballet Márcia Lago, momentos muito breves mas de grande alegria e satisfação.
Quando me mudei para a Inglaterra e iniciei minha carreira, me senti muito independente. Estava ganhando meu salário como bailarina, me defendendo sozinha e realmente vivendo meu sonho! A vida ficou muito mais emocionante, e eu curtia muito a privacidade do meu flat, poder pegar o ônibus com facilidade para qualquer lugar, o fato de na Inglaterra tudo ser feito perfeitamente na hora, e sentia uma segurança e apoio por estar empregada em uma companhia de balé internacional. Cada vez que eu voltava ao Brasil, me sentia um pouco perdida e irritada. Ainda demoro alguns dias para me situar, até me acostumar com o calor, que sempre desejo tanto, mas acho que o que mais me afetava era sentir-me dependente dos meus pais para me levar a todos os lugares e ter que me adaptar a um ritmo de vida bem diferente.
Minha mãe andava sempre correndo pra lá e pra cá, sempre atrasada para suas aulas e me arrastando junto, enquanto meu pai também me atrasava para meus compromissos e mudava de ideia sobre nossos planos do dia pelo menos umas cinco vezes. Eu estava constantemente correndo para algum lugar, fazendo aulas de balé, ou presa em um trânsito insuportável, enquanto não conseguia aproveitar e relaxar apenas ficando em casa. Acho que agora é a hora de explicar que, embora eu seja paulista, não moro na cidade de São Paulo. Minha casa fica 40km a nordeste da grande metrópole, próxima a Atibaia, que é conhecida por suas safras de morango cultivadas principalmente por descendentes de japoneses.
Escondida no campo, nossa casa é um lugar de belas paisagens e imensa paz. Nossa família a chama de Shangri-la, um local remoto e idílico onde a vida se aproxima da perfeição, onde o sol brilha mais forte do que em qualquer outro lugar (literalmente). Tio Edu construiu sua casa de Atibaia em 1983 e, dez anos depois, meus pais desejaram um pedacinho de seu próprio paraíso. É um lugar tão cheio de lembranças, onde passei minha infância fazendo travessuras com os primos, ‘conhecendo' os bezerros do vizinho, jogando futebol no gramado, criando galinhas de vez em quando, subindo em casas na árvore, brincando de esconde-esconde com os poucos vizinhos que tínhamos, e passando ali os fins de semana e feriados, exceto talvez o Ano Novo.
No Brasil, as pessoas são muito supersticiosas sobre o Ano Novo e se apegam a antigas crenças que supostamente lhes trarão sorte e prosperidade. Na véspera de Ano Novo, a maioria se veste toda de branco, aludindo à paz e à purificação espiritual, com lingerie nova da cor que mais deseja atrair (amarelo para dinheiro, vermelho para paixão, etc.), come uma colher de lentilha para garantir dinheiro, e se você estiver perto do mar quando o relógio bater meia-noite, deve pular sete ondas como uma pequena homenagem a Iemanjá, a Rainha do Mar. De acordo com a tradição, ela lhe trará força para superar quaisquer obstáculos que você possa enfrentar no ano que está por vir. Tendo dito isso, eu não sou capaz de passar o Ano Novo do jeitinho brasileiro há muito, muito tempo.
Meu pai é o arquiteto da nossa casa, literalmente construindo-a do zero, e em 1999, ela se tornaria nosso lar permanente. Cansados de todo o estresse e correria da cidade grande, meus pais decidiram se mudar para lá e viajar todos os dias para São Paulo. Leva menos tempo para percorrerem 40 km na rodovia Fernão Dias do que cobrir uma distância menor no trânsito terrível de São Paulo.
Eu tinha acabado de completar onze anos quando nos mudamos para lá, e o engraçado é que ressentia o fato de ter que viajar tanto, até São Caetano do Sul, para aulas particulares de balé. Saía de casa muito cedo e voltava tarde todos os dias, exceto aos domingos. Nunca apreciei tanto seus arredores como agora, mas acho que isso também pode ter a ver com algo que chamamos de 'habituação'.
O ser humano se acostuma com tudo que é rotina. Isso acontece o tempo todo, mesmo quando você se torna bailarino do Royal Ballet. Cheguei ao ponto de não dar o devido valor a esse incrível teatro, e achava que isso nunca aconteceria comigo. Temos um grande palco que podemos chamar de nosso, estúdios luminosos e espaçosos, um vasto repertório para escolher ...no entanto, isso torna-se normal. Ir à Royal Opera House se parece apenas como mais um dia cansativo de trabalho. Da mesma maneira, parei de valorizar Atibaia e de contemplar a bela paisagem que me cercava porque fazia parte do meu dia a dia.
É difícil ver tudo com novos olhos, mas a verdade é que, se queremos ser felizes, precisamos cultivar um senso de gratidão. O livro que estou lendo no momento, O Poder da Gratidão de Janice Kaplan, reafirma exatamente isso, mas é algo com o qual cresci e aprendi de meus pais.
Nos últimos anos, meus pais adotaram um ritmo de vida menos frenético. Todas as manhãs, eles tomam café juntos com a porta da sala de jantar escancarada para a vista deslumbrante da Pedra Grande. Em seguida, minha mãe vai até o laguinho para alimentar seus “filhos gordinhos” - as carpas. Temos um labrador - Olliver - e dois cães de rua adotivos - Rita Cristina e José Miguel Lopez - que sempre vêm latindo por comida também. Muitas vezes, encontro meu pai com aquele olhar distante, admirando a paisagem pitoresca, e quando questionados se a casa está finalmente pronta, ambos concordam que, mesmo passados trinta anos, ainda é um projeto em andamento.
Costumava pensar que eles deveriam estar economizando dinheiro em vez de gastá-lo na construção disso e daquilo (o que mais alguém poderia querer além de sol e piscina?), mas agora vejo que lhes dá enorme prazer planejar cada detalhe, fazer uso do espaço para compartilhá-lo com família e amigos. Eles curtem tudo, cada milímetro, nada é esquecido. É realmente sobre sentirem-se orgulhosos e abençoados, e aproveitarem ao máximo o momento presente.
Quando saí do Brasil pela primeira vez, nunca imaginei que Atibaia se tornaria o meu santuário, um lugar tranquilo onde poderia recarregar as baterias e reajustar meus valores. De uns tempos para cá, faço questão de priorizar ficar em casa. Portanto, fazer quarentena por duas semanas não foi um problema para mim. Comi muita comida saudável e saborosa preparada por tia Cida, que mora ao lado, tomei muito sol, nadei na piscina, joguei tênis com o Leo e Carol, fiz yoga, tive um bom descanso e recebi muito carinho dos meus pais (sinto-me envergonha de dizer que ainda me mimam como uma princesa). Desta vez não pude ver todo mundo, mas faremos valer a pena essa espera!
A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, e sim em ter novos olhos. - Marcel Proust
Pois é, agora que moro a quilômetros de distância, Atibaia virou um pequeno oásis, meu refúgio. Sinto-me muito feliz por estar ali próxima a minha familia, podendo admirar as montanhas e pastagens, ouvindo o canto dos pássaros, absorvendo toda a energia que o lugar emana. A vista é tão linda, do tipo que faz você se sentir grato por apenas estar vivo. Acredito que a natureza tenha esse poder e influência sobre nós, meros seres mortais.
Sempre que estou ali, quero congelar o tempo e esquecer que existe carreira ou ambição. Minha avó já deixou bem claro que acha que meu retorno ao meu país já deveria ter sido feito há muito tempo, e às vezes sinto que ela pode até estar certa. Eu poderia simplesmente largar tudo e voltar para casa, para os braços dos meus entes queridos. Mas todos nós sabemos que a vida não é tão simples assim, e que agora já é um pouco tarde demais... meu coração também se encontra aqui, em Londres.
Está cada vez mais difícil deixar minha família, tenho que admitir, mas eu já me conformei com essa vida (anos e anos de prática). Falo tchau e mal olho para traz, engolindo minhas lágrimas enquanto me aproximo da alfândega. Não consigo imaginar como essas despedidas devem ser difíceis para meus pais também, mas sabemos que, enquanto eu estiver feliz e realizada com meu trabalho e minha vida aqui, vale a pena o sacrifício.
Sempre volto a Londres com fé renovada, e parece que estou vivenciando tudo pela primeira vez novamente. Percebo que realmente sinto falta da minha vida inglesa – minha casinha aconchegante, meu namorado, minha rotina do dia a dia ... Sinto-me muito grata por ter um emprego aqui, e que emprego!!! A Royal Opera House é algo fora deste mundo; é extremamente incomum para nós, brasileiros, poder dizer que é aqui que trabalhamos. Acho que só cheguei até aqui porque, a cada passo do caminho, a cada curva da estrada, pensei ... Isso tem que valer a pena!
Agora entendo que não existe apenas um lugar para chamarmos de lar. Minha casa está aqui e ali, em minhas novas e emocionantes aventuras em território inglês, e nos lugares coloridos da minha infância.
Veja abaixo videos de uma apresentação no Festival Vermelhos de Ilha Bela de 2018, ao som de compositores brasileiros Villa Lobos e Nazareth.
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